terça-feira, junho 13, 2006

TRECHO DO LIVRO "CESALPÍNIA"

Nei já suava frio, tremia até, quando seu amigo partiu com os dois en­gravatados para um lado ao mesmo tempo em que Berger e Moraes aceleravam para outro. "Prenderam Lucano? Então vão me prender também, pois já devem estar sabendo de tudo. Ou não?”

— Oh, meu Deus! — disse em voz alta. — O que está acontecendo?

Não podia acreditar que haviam descoberto que Lucano estava escrevendo sobre seu país proibido, afinal, seu método era perfeito: escrevia tanto os ensaios-isca como Terra Incognita de maneira que suas sentinelas não vissem jamais a tela do computador. Trabalhava com dois disquetes de cores idênti­cas. Copiava o arquivo contendo os ensaios, mas mantinha o outro disquete atrás do gabinete, fora do alcance das lentes. Sabia que periodicamente vas­culhavam sua máquina. Por isso deixava apenas os ensaios gravados no disco rígido. Textos secretos, somente em disquete.

Com discrição realizava a troca de discos. Encerrada a operação, aper­tava os dois disquetes na palma da mão e os enfiava no bolso da calça. A dupla de agentes de plantão, por causa do monitor e da mesa, via Lucano ape­nas do tórax para cima. Para não se enganar na hora de entregar seus textos a Peres, rasgava um pequeno pedaço do adesivo dos disquetes que continham os ensaios. Com a ponta dos dedos reconhecia qual deveria pegar. Por via das dúvidas, colocava sempre o disco com Terra em contato com sua perna.

“A menos que ele tenha entregado a Peres o disquete errado”. Esta hipótese fez com que Nei sentisse o maior calafrio de sua vida. Por algum tempo não quis receber ninguém. Depois, mesmo antecipando o resultado, ligou para o apartamento de Lucano. Nada. Em casa, com muita dificuldade desvenci­lhou-se das perguntas de Moira, que percebera facilmente seu estado de apre­ensão e angústia.

Respondia asperamente à mulher: agora adicionara o remorso a seu lamen­tável estado emocional. O fato de não poder contar a Moira a milésima parte da verdade somente piorava a situação. Uma madrugada em claro e uma garrafa de uísque depois, Nei resolveu ir até a casa de Lucano.

Mal o dia clareara o editor apertava freneticamente o botão da campai­nha. Chegando para o trabalho e usando as escadas, uma garota, que trabalha­va como empregada doméstica em outro andar, gritou:

— Ei, moço! Desde ontem à tarde ninguém entrou nesse andar.
— Ninguém? Mas...
— Então o senhor não sabe? Dos quatro apartamentos daqui só dois são ocupados: esse que o senhor está chamando alguém e esse aí do lado. Ninguém mora nos outros dois desde que vim trabalhar aqui. Acho que só a dona Acácia, a velhinha do oitavo andar, lembra de gente morando neles. E nesses dois aí só mora gente esquisita. Desculpa se eu tiver falando mal de algum amigo seu...
— Não, tudo bem — disse Nei, mais calmo. — Continua, continua, por favor.
— Pois então, aqui no 501 mora sozinho o cara mais esquisitão, o tal de Lucano. Não trata ninguém mal, mas fala pouco. Não puxa assunto com nin­guém, não revela nada da vida particular. Ajuda as pessoas, sabe? Ajuda car­regar pacotes, empurra e levanta cadeira de roda (o seu Tonico é aleijado), dá bom-dia e tudo, mas é esquisito. Ele...
— E os outros? Os daquele apartamento.
— Acho que é tudo bicha — Nei manteve seu olhar ávido e confuso. — É. Vivem quatro caras aí. Tão sempre juntos e em casaizi­nhos. Acho que tem dois casais de bichas. Dizem que muitas vezes eles dormem fora. Sabe como é a vida dessa gente, né? O porteiro, seu Manuel, diz que eles - as bichas, entende? - têm rolo com o Lucano. Que sempre que o Lucano sai, passa um pouco eles saem também. O Lucano chega, pode esperar que eles vêm atrás. Eu mesma já reparei esse negócio umas duas vezes. O senhor é amigo deles? Ai, meu Deus. O senhor deve tá com raiva de mim por eu chamar todo mundo de bicha, não é? Desculpa.
— Fique tranqüila. Eu não sou bicha e acho que o Lucano também não é. Ele é meu amigo, só isso. Quanto aos outros...

Nei despediu-se da garota e, desalentado, deixou o edifício. Enquanto descia imaginava que por mais que os serviços secretos e de segurança previnam-se, sempre haverá vizinhos curiosos.

— Sei não, mas esse cara... — balbuciou a jovem quando o elevador partiu.

...

Da editora, Lucano foi levado à sede da Polícia Federal no Rio. No carro tentou saber por que estava detido.

— Olha, cara — disse um dos policiais —, veio uma ordem de cima e este papel que a gente te mostrou. É tipo um mandado, entendeu? Nossa ordem é te colocar numa salinha lá na PF, só isso.
— É — confirmou o outro. — Uma salinha de visita, sem algema, sem jeito de cadeia, entendeu?
— É pra você ficar lá até o Peres, que faz não sei o que no governo, chegar pra te ver. No mais, a gente está boiando também.

No rádio a freqüência da polícia estava sintonizada. Atentos, os três ouviram que acabava de explodir outra bomba no Rio de Janeiro. Desta vez dois policiais federais haviam morrido. O artefato fora colocado próximo ao portão dezoito do estádio do Maracanã. Após proferir um palavrão, o policial que dirigia o carro disse:

— O Silva e o Renatão. Em pedaços. Ainda era de madrugada. Ligaram lá pra gente avisando que tinha uma bomba no Maracanã. Mandaram uma equipe para achar e desarmar a droga — soltou mais alguns impropérios. — O Silva e o Renatão eram os cobras do negócio, pô.
— Mas os responsáveis se identificaram? — perguntou Lucano.
— Não. Disseram umas bobagens que o pessoal lá anotou e...
— Epa, epa — interrompeu o agente que ia no banco do passageiro. — Não fala nada pra esse cara, não, Martins. Ele é suspeito, ele é suspeito. Por isso que mandaram a gente pegar o malandro.
— Mas não falaram por que era pra pegar ele, pô.
— Mas só pode ser por isso. Tu vai se dar mal, neguinho. Se foi tu e teus amiguinhos que colocaram aquela bomba e mataram nossos chapas... Vai se dar mal.

Agora com maior brutalidade, Lucano foi conduzido até uma sala de três por três metros. Dentro, um sofá de almofadas cobertas por negras capas de vinil, uma cadeira de assento plástico e pernas metálicas e mais nada. A porta, que tinha um visor, foi trancada.

Pouco depois Lucano ouviu o barulho da fechadura. Pensou que fosse Peres. Enfim, ficaria esclarecida toda a situação. Sem dúvida fora preso devido ao telefonema dos terroristas. Mas o que os havia levado a pensar nele como suspeito? Afinal, não o vigiavam noite e dia sem cessar? Era virtualmente impossível sua participação em qualquer grupo terrorista.

Não foi Peres quem entrou. Era um dos agentes que vieram com ele, o do banco do passageiro. Não estava só. Atrás dele vinha outro maior, de espesso bigode e físico de pugilista peso-pesado.

— Aí está o homem — disse o primeiro, apontando para Lucano.
— Terrorista filho da...

Lucano não ouviu o peso-pesado terminar de xingá-lo: um violento soco em sua têmpora esquerda deixou-o surdo e derrubou-o sobre o sofá. Antes que pudesse esboçar qualquer reação, que pudesse falar qualquer coisa, o peso-pesado o puxou pelo colarinho e atingiu novamente sua cabeça. Então o segurou pelas costas para que o outro policial desferisse murros contra seu abdome.

Como adquirir o livro Cesalpínia:

Por enquanto, só por e-mail, em PDF, pela simbólica taxa de R$ 5,00. Meu e-mail é franciscocabral@gmail.com.

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