domingo, outubro 29, 2006

MAIS UM TRECHO DE "A CONFRARIA DOS HOMENS DE BEM"

Quase meia-noite na boate Rapsódia. Cotovelos no balcão, Abel parecia conhecer apenas dois movimentos: mover a cabeça na direção do relógio e o­lhar para todos os lados como um coelho que fareja freneticamente o ar em busca dos cheiros exalados por seus predadores. Na verdade Abel assemelhava-se mais a um mineral inerte em comparação com o modo com o qual se retorciam os corpos jovens que praticamente enchiam o lugar. Já estivera ali várias vezes, em situações bem menos tensas e desagradáveis, com Renato Zola e ou­tros amigos, mas principalmente com mulheres das mais variadas estirpes.
Já havia se passado seis minutos depois da meia-noite. O volume do som era tão alto que Abel não ouviu aproximar-se o homem que veio se sentar à sua esquerda. Quando se virou para esse lado, em seu estilo roedor, assus­tou-se ao deparar com o rosto do emissário.
— Esperava outra pessoa, Abel?
Após alguns momentos de indecisão, Abel apertou a mão que lhe fora es­tendida. Era o que devia fazer, se quisesse acabar rapidamente com aquilo.
— Desculpe-nos se o fizemos esperar. A gente tinha de analisar o ter­reno, ver se vieram amigos seus. Você sabe... A gente precisava ter seguran­ça. Mas você é um homem de palavra. Parece estar mesmo disposto a colaborar.
— Se não estivesse, não viria.
— Claro, claro. Para começar...
— Espere um pouco. O dinheiro é bom mesmo?
— Claro que sim. Você não vai ter de se preocupar mais com isso para o resto da sua vida. Pode confiar. Vamos fazer o seguinte, já que você está meio ressabiado... Que gata, hein? — disse apontando com os olhos a jovem vestida com trajes sumários que começou a dançar perto dos dois. Falando mais baixo e mais próximo a Abel, prosseguiu: — Comece liberando um ou dois nomes, os nomes de quem ordena quem deve morrer. Daí você recebe a primeira parcela. Depois você passa outros nomes, dá detalhes dos mecanismos, essas coisas. Então recebe mais. Fica tudo a seu critério. Que tal?
— Interessante. Quer três nomes logo de cara?
— Por que não?
— Aqui estão os primeiros três — disse Abel, retirando um pedaço de papel do bolso da calça. — Leia discretamente.
Ávido, o emissário abriu o papel.
— “Atos, Portos e Aramis”. Que diabo é isso?
Foi nesse exato instante que Abel estalou os dedos, aparentemente sina­lizando para o barman, enquanto o emissário, antes que pudesse dizer mais alguma coisa, antes que pensasse em reagir, teve seus movimentos paralisados por um cano de uma Magnum 45, que de repente percebeu estar encostado em sua têmpora direita. Pelo canto do olho percebeu que quem segurava a arma era a graciosa jovem que dançava ao seu lado.
— Você não vai escapar dessa, Abel — disse o emissário. — Tem mais gente comigo aqui.
Imediatamente três homens sacaram seus revólveres. Um deles, notou A­bel, partilhava muitas características com o atirador descrito por Gleusa. Agora que apontavam suas automáticas para Abel e para a moça, estavam iden­tificados, o que tornou mais fácil o trabalho de cerca de metade dos fre­qüentadores da boate, que também apontou suas armas para os homens do emis­sário. Estes, numa desvantagem de um para dez, não tiveram outra saída que não largar seus instrumentos de trabalho. Da cabine de som o dono da boate pedia calma aos verdadeiros clientes.
— Fica frio todo mundo. Tudo não passa de uma pequena ação policial.
Algemados, os quatro homens saíram escoltados pelos numerosos e jovens “policiais”, que ainda foram agraciados por aplausos entusiásticos de pesso­as não completamente refeitas do impacto causado pela ação fulminante. Uma vez no lado de fora, o quarteto foi rapidamente separado e colocado em dois carros com motorista e dois outros homens armados, cada. Quem viu não pres­tou atenção ao fato de que os carros não eram da polícia. Se alguém perce­beu, não se importou. A maioria dos participantes da ação dispersou-se pela noite paulistana, mimetizando-se com as pessoas comuns. Antes de se dirigir ao carro no qual Raful o esperava — e que seguiria os dois primeiros —, Abel aproximou-se da moça que apontara sua arma para a cabeça do emissário.
— Um instante, por favor. Sabe do que tenho medo de perguntar? Onde você escondia aquele trabuco.

domingo, outubro 08, 2006

HUMOR: DE NOVO, ARISTÓTELES OMORRIS

Se eu fosse americano, teria uma
estátua em cada mictório público

Aristóteles Omorris

Jataí, Sudoeste goiano, Goiás, Centro-Oeste, Brasil, América do Sul, Américas, Hemisfério Sul, Hemisfério Ocidental, Terra, Sistema Solar, Via Láctea, Universo, Vila Santa Maria - Ninguém é santo em sua própria terra, já dizia o velho deitado. Homem venerado em todos os cantos do mundo, cantado em verso, prosa e rap pelos povos de todos os 437 países que já visitei, eu, o incrivelmente modesto Aristóteles Omorris, sou prática e injustamente ignorado em meu próprio e pérfido torrão natal.

É espantosa a ingratidão do brasileiro médio (e medíocre, no caso do titular deste blog). Enquanto passeio - com o nariz tapado, evidentemente - pelas ruas de nossas encardidas cidades, jamais em década alguma alguém se aproximou para dizer um mísero e reles “obrigado”.

Tudo que pediria - mas não prostrado; apenas ajoelhado - era que as pessoas dissessem um sucinto e sincero “obrigado por existir, excelentíssimo, magnífico, estupendo, fantasticamente superior, ofuscantemente lindo, guia extremado dos povos, benefactor da humanidade e ex-campeão de cuspe a distância Ilustríssimo Sr. Aristóteles Omorris”.

Só isso. Que que custa?

Em minha soberba humildade, nunca reclamei o reconhecimento pelos meus mais altos feitos. Nem mesmo quando representei com enorme competência e galhardia o nome de nosso país no exterior. No entanto, os invejosos - certamente liderados por Francisco Cabral - trabalharam para manter tais glórias em indecente anonimato.

Ninguém perguntou, mas vou deixar um pouco a modéstia de lado para relatar uma das vezes em que fiz reluzir o nome do nosso país em terras alienígenas.

Todos devem se lembrar do estranho desaparecimento da mais cara e valiosa coleção de diamantes do mundo, em Londres, há oito ou doze décadas. Profissionais de várias nações se uniram para perpetrar o perfeito roub... quer dizer, a perfeita subtração das preciosas pedras.

E sabe quem era o solitário representante das nossas cores nacionais? Não, ninguém sabe, pois nossa mesquinha mídia fez questão de não revelar que havia no grupo de assalt... ou melhor, de especialistas em extração à revelia de propriedades alheias, um digno nativo verde-amarelo. E tal nativo era o autor destas maravilhosas linhas. Isso mesmo: papai aqui! E qual foi o agradecimento pátrio por eu ter feito bonito lá fora naquela e em outras oportunidades? Zero! Nada! Rosca!

É por essas e outras que, neste segundo turno, continuo ao lado daquele que sempre reconheceu meu valor e que prossegue utilizando-se de meus serviços e de meus métodos. Pau neles, meu rei!

Aristóteles Omorris é tão pobre e deprimido que este será seu epitáfio: “Só não cortei os pulsos porque estava sem dinheiro para comprar gilete”




Arquivo pessoal:
Aristóteles Omorris
quando foi "convidado" a
passar um longo tempo afastado
do convívio em sociedade.
"Foi apenas para
espairecer e colocar
as idéias em ordem",
alegou o colunista

quinta-feira, outubro 05, 2006

TRECHO DE "O AMIGO DE PRAGA"

Pela manhã Etê queria ele mesmo retirar a bala com um alicate comum.
Sua pele não fora perfurada, mas afundada entre duas costelas em cerca de três centímetros. Mas Dennis convenceu-o a procurar o médico. No carro, a caminho da cidade, ainda tinham o que conversar.
— Como foi aquela história de apagar os sujeitos com um golpe só?
— Foi o resultado da combinação de alguns cálculos que eu fiz levando em conta a força e a precisão necessárias para provocar um desmaio no oponente. Considerando-se peso e altura aproximados dos adversários, aplica-se um golpe com determinada força num ponto restrito de sua nuca.
— Você andou estudando anatomia, física, essas coisas, não?
— Andei estudando tudo o que é passível de ser estudado.
— No que está com toda razão. E agora? Vamos continuar defendendo os fracos e oprimidos?
— Você fala com a tranqüilidade dos que foram apenas dar um passeio. Como se agredir pessoas fosse uma brincadeira.
— Não, eu...
— Sim, eles eram bandidos, mas suponha que eles vivessem numa sociedade justa, sem brutais diferenças sociais, sem um abismo entre ricos e pobres, em que todos tivessem oportunidades de viver condignamente. Nesse hipotético caso, eles recorreriam a uma atividade de altíssimo risco que é o crime? E certamente há um cérebro por trás de tudo, comandando as ações. Pelo linguajar simplório, pode-se perceber que eles não passavam de subalternos.
— Com estas prisões o delegado poderá chegar ao mandante.
— Sinto-me mal por tê-los agredido. A dor provocada pelo tiro não é nada comparado ao sofrimento por ter causado sofrimento a outrem.
— Você fez o que era preciso numa situação extrema. Só conversa não os convenceria a voltar para casa e procurar emprego.
Já no consultório, munido de uma pinça, em poucos minutos Conrado retirou o projétil encravado.
— Etevaldo, meu velho, vai ser preciso um fuzil dos bons pra furar sua couraça. E olhe lá. Só estou em duvida é sobre o tempo que vai levar pra sua pele voltar ao normal, porque afundou e arroxeou o local. Se é que vai voltar ao normal. Isso pra mim é novidade.
— De qualquer forma, obrigado, doutor.
— Vai vestindo a camisa. Eu vou falar com o Dennis lá fora.
Dennis, na sala de espera, lia uma revista quase tão velha quanto ele mesmo.
— Dennis, meu garoto, o que vocês fizeram foi uma loucura. O Inácio já deve ter dito pro delegado que quem acabou com o assalto foi um magrelo alto e cabeçudo acompanhado de um indivíduo mais jovem. Logo, logo baterão na porta do seu avô. Quem mais no estado todo se encaixaria nessa descrição? Daí vão investigar o Etê, vão descobrir que ele não tem documento nenhum, que não é tcheco coisa nenhuma. Então vão ligar sua aparência com a do piloto morto daquela nave e pronto.
— Seria terrível. Teremos de estar preparados. Mas não é isso que me preocupa mais, doutor.
— Então é o quê, criatura?
— E se o Etê tiver sido mandado para iniciar um processo de invasão do nosso planeta? Já pensou um batalhão, uma população inteira de seres como ele? Nós seríamos dominados como um grupo de crianças por um pelotão do exército.
— Difícil imaginar alguém como o Etê com um propósito tão sinistro.
— Por melhores que sejam, soldados cumprem ordens. O problema é quem dá as ordens. O problema é que não conhecemos a personalidade do Etê integralmente. Muito menos a de seus conterrâneos. E se for um povo onde o mau-caratismo domine?
— Pára com isso, Dennis! Você me provoca calafrios com essas suas suposições. Venha, vamos ver nosso amigo.
Ao entrar no gabinete depararam-se com Etê imóvel sobre a maca. Em suas mãos, o estetoscópio de Conrado, objeto que o alienígena fitava como se o estudasse detidamente. Absorto, demorou para perceber que havia alguém ao seu lado.
Tanto Dennis como Etê passaram o resto daquela manhã e quase toda a tarde mais pensativos, mais sombnos, eles que sempre eram tão alegres. O clima lúgubre só foi quebrado pelas noticias trazidas por Juraci.
— Ocêis tá sabeno o quêqui aconteceu?
Dennis sobressaltou-se. Em sua cabeça não tinha mais dúvidas: toda a cidade, toda a região estavam a par do que ocorrera na madrugada anterior. Era questão de tempo a policia chegar para fazer algumas perguntas. Logo depois viria um ávido e truculento destacamento da Aeronáutica.
— O que foi, homem de Deus? — impacientou-se Prudente. — A mulher do padre pediu divórcio?
— Que que isso, seu Pruderite? Isso é pecado, sabia.
— Fala, Juraci — suplicou Dennis.
— Uai, sô, o delegado prendeu a cambada qui tava robano gado. Diz qui quem prendeu de verdade memo foi o seu Inácio e a piãozada dele.
— O quê? — surpreendeu-se Dennis, com uma ponta de indignação.
— Foi o qui o delegado falô. Diz qui o seu Inácio distribuiu purretada na cabeça dos hômi. Os pião acordô cum os grito e foi lá e terminô o sirviço. Aí o seu Inácio pegô a carabina dêze e mandô os otro ficá bem quetin. Adispôis amarrô os bandido e chamô a puliça.
— O Inácio? Com aquela barriga? — estranhou Prudente.
— E os bandidos? — quis saber Dennis. — Confirmaram a história?
— Diz qui um dos lalau falô qui o capeta tava do lado do seu Inácio, um fióte de cruiscredo do tamãi dum poste qui bala ninhuma num dirrubava. Otro falô qui era um pião do seu Inácio qui tava de tôca infiada na cabeça. Aí o seu Inácio falô qui éze tava tudo era variano pur causa das pancada no coco. Tinha uns qui foi pego na gabina e viu de perto o mascarado, mais tava iscuro e êze tava mais percupado era ca carabina do seu Inácio.
— O delegado não desconfiou de nada? — perguntou Dennis, tentando disfarçar seu exacerbado interesse.
— Ele ficô mêi anssim. Diz qui ele ficô mêi sem sabê cumequi uns cinco hômi disarmado pode dá conta de oito bandido cheio duns trabuco. Mais a famía do seu Inácio garantiu qui foi tudo verdade verdadera memo.
Para espanto de Prudente e pasmo e terror de Matilde, a dupla aventureira, logo após o jantar, contou-lhes toda a verdade. Verdadeira.
— Sabia que o Inácio tava de lorota — disse Prudente.
— Mas que perigo! Como vocês tiveram coragem de... Ah, meu Deus. Tá doendo muito, Etevaldo? Que seja só essa vez, viu? Não quero saber de vocês arriscando a vida por aí, não? Principalmente você, mocinho — disse Matilde, olhando severamente para Dennis. — Onde já se viu? Você nem tem pele que nem daquele bicho... como é que chama mesmo? Rorio... rino... renoceronte!
— Viva a vaidade humana! — comentou mais tarde Dennis. — Graças a ela seu Inácio fez por nós o trabalho de despistar a polícia. Ele deve ter combinado a mentira com seus peões e a família. Coisa feia... e bem-vinda.
— Fico me perguntando qual a vantagem que Inácio Caldas pode angariar ao assumir a detenção dos ladrões — disse Etê.
— Fama, prestígio, admiração...
— E daí? Sua vida vai melhorar com esses ingredientes? Ele vai tornar-se uma pessoa melhor, mais plena, mais feliz?
— A glória é a mãe das histórias de pescador. Ainda que falsa. É um meio de se eternizar mesmo que em forma de lenda.