quinta-feira, novembro 22, 2007

UM TRECHO DO LIVRO "CESALPÍNIA"

Wilson Peres foi a primeira pessoa que Lucano viu ao abrir os olhos. Estava na enfermaria da Polícia Federal.
— Que pena, rapaz. Eu devia ter chegado antes. Aqueles bárbaros...
— O quê?... — Lucano tinha dificuldades para falar. Sentia o gosto de sangue na boca. — Parece... anestesia... de dentista.
— Fica calmo. Você levou cinco minutos de surra. Só isso. Agora descanse. Logo, logo a gente conversa.
Depois de ser entupido com analgésicos — sofrera fraturas no rosto, perdera alguns dentes e teve hemorragia interna —, Lucano dormiu mais algumas horas. Mais tarde, tendo recobrado plenamente a consciência, pediu explicações a Peres.
— Bem de manhãzinha eles receberam um telefonema. Um homem, forçando a voz pra disfarçar, disse, textualmente... Deixa eu ver... Tenho anotado aqui — procurou nos bolsos do paletó. — Achei. Escuta: “O espírito de Wolfe Tone está forte entre nós; o espírito hiberniano agora grassa entre nós. Portão dezoito, Maracanã. Que ninguém esteja lá quando nosso cartão explodir. Libertem-nos e paramos com isso”. Disse isto e desligou. Avisaram os altos escalões. O ministro da Justiça foi um dos primeiros a saber. Logo a Figura me ligou. Disse que tinha mandado os federais pegar você, colocá-lo em custódia. Me mandou vir para cá. Foi para te proteger, compreende?
— Então acham... que eu... eu tenho algo a v... ver com tudo isso?
— Só precaução, entende? A Figura decifrou a mensagem...
— Sei, sei... Hibernia é... é o nome latino... da Irlanda. Wolfe Tone... fundou uma sociedade... os Irlandeses Unidos... Foi no século dezoito... Eles... eles queriam autonomia... libertar-se da Inglaterra.
— Lucano, você...
— Sei que me... me incrimino por saber... essas coisas. Mas você... você sabe muito bem que... que não tenho... nada com isso. A Figura... a Figura decifrou a mensagem... Como eu represento um... um país sem
autonomia... logicamente sou um suspeito... Há lógica aí... Mas sou inocente... Você sabe disso... A Figura sabe.
— Mas esses... esses gorilas não. Julgaram você suspeito e partiram para a ignorância. São uns covardes. Olha o que fizeram com você.
— Devo estar... uma graça, não? Diga-me, Wilson... Não vou poder... participar mais... daquele concurso de... de beleza, não é?
— Como você ainda tem forças para brincar? Olha, Lucano, você vai passar a noite aqui. Mas não se preocupe: o Berger e o Moraes estão vigiando a porta. Amanhã cedo virão o Ari e o Negri. Então você vai ser levado para sofrer uma operação de correção facial. Te vejo amanhã.
À noite um enfermeiro mal-encarado ficou para cumprir as ordens do médico. Mais remédios, entre eles um sedativo. Mas no meio da madrugada Lucano despertou. Sua cabeça latejava. Tanto que não conseguia pensar. Era como se estivessem enfiando brocas com furadeira elétrica em sua testa e no topo da cabeça.
Sentiu vontade de vomitar, mas não tinha nada no estômago. Seu alimento desde que ali chegara era o soro. Subitamente, ouviu uma voz. Numa maca encostada à parede do ambulatório alguém balbuciava palavras entrecortadas por gemidos. Estava escuro. Lucano tentava concentrar-se no que o homem dizia. Decidiu ir até ele.
Sentiu uma dor lancinante no estômago ao sentar-se em sua estreita cama. Ficou sentado por algum tempo de olhos fechados. Ao ouvir o homem dizer, agora claramente, a palavra liberdade, abriu os olhos e, ignorando as dores, levantou-se. Cambaleando, apoiando-se nas outras camas, guiando-se pelo tato, colocou-se ao lado de seu companheiro de infortúnio.
— Meu amigo — disse Lucano, que, na penumbra do ambiente, por mais que se esforçasse não conseguia ver o rosto do homem. — Também pegaram você... por causa das bombas?
— Quem é você?
— Eu... eu sou... um suspeito, eu acho — Lucano gemia enquanto falava; levava as mãos à cabeça, ao estômago e se perguntava se estava dormindo. — E você?
— Um delegado disse que eu tinha colocado a bomba no Maracanã e me deu um chute. Chutou bem no... no meio das pernas. Depois de uns tabefes, me colocaram no pau de arara — sua fala era convulsiva, um tanto quanto alucinada.
— E você colocou... a bomba no... no Maracanã? Eu não fui... E o Wilson sabe que... não fui eu. A Figura também.
— A Figura? Você conhece a Figura? Eu queria conhecer a Figura.
— Não conheço a Figura. Ei... Mas como você... sabe da Figura? É segredo — Lucano falava sem pensar. Gemia e falava.
— Então você também não conhece a Figura. Ninguém conhece a Figura. Só o Styles que fala com o homem. Só ele conhece a Figura.
— St... Styles? Nunca ouvi falar... O Wilson... conhece a Figura.
— O Styles é a única pessoa que conhece meu segredo. Mas se você contar o seu, eu conto o meu.
— Conta o seu primeiro... que eu... eu estou... Sabe quando o dentista anestesia sua boca?
— Tá bem, tá bem. Eu venho de um lugar...
— Dá para falar... mais devagar? Minha cabeça dói mais... quando você fala rápido. Você é... da Cesal... Cesalpínia?
— Cisalpina?
— Cesalpínia.
— Nunca ouvi falar, amigo. Venho do norte. Meu país é uma imensa clareira na floresta amazônica. Oficialmente área desmatada, queimada, inutilizada. Também local de exploração e extração de cassiterita. Sabe os espanhóis e ingleses que entraram pela foz do Amazonas? Pois foram eles que abriram a rota que nós usamos depois.
— Meu amigo, eu estou dormindo?
— Está bem acordado, como eu. Se bem que você está bem mais derrubado. Você está quase caindo. Senta aí nesse banquinho. Isso.
— Você é da Hibernia?
— Então você sabe da mensagem dos terroristas. Styles me falou dela. Não, não. Meu país chama-se Candirúnia. Não gosto do nome, não gosto. Por causa do peixe que o inspirou, o candiru. Um peixinho, um minibagre de três centímetros que dá no mar mas entra pelo Amazonas de vez em quando. Se você nadar pelado em água com candiru, indubitavelmente o peixe nojento vai querer conhecer seus mais profundos recônditos. Disgusting. O pessoal que chegou lá sentiu na carne a abundância do kani’ru, como dizem os tupis.
— Seu nome... Qual é o seu nome?
— Charlton. Raul Charlton. E o seu?
— Lucano. Prazer.
— Prazer. Nossa sociedade é multicultural, mas há uma competição entre as nacionalidades, ou entre o que sobrou das nacionalidades fundadoras da Candirúnia. Sabe por que o Brasil nos mantém escondido?
— Inveja?
— Não. Quer dizer, talvez também por inveja. Mas primordialmente devido às nossas constantes experiências no sentido de encontrar a melhor forma de governo. Não temos esse conformismo doentio, essa imobilidade morrinha dos brasileiros, dos americanos com seu bipartidarismo, do ser humano em geral. No começo era tudo misturado: espanhóis, ingleses, negros, portugueses, índios, holandeses e franceses. Mas aí o rei Mbuto, que era filho de um rei africano trazido para ser escravo no Pará, nos deu a sábia sugestão — Mbuto era uma espécie de líder dos negros; ele fugiu do cativeiro paraense e foi para a Candirúnia...
— Certo... Prossiga.
— Bem, Mbuto sugeriu que nos dividíssemos por afinidade e que cada uma das províncias — a Candirúnia seria dividida em províncias — adotasse um sistema de governo. Ninguém podia imitar o outro, entende? Alguns anos depois o melhor sistema seria então adotado por todo o território. Sabe o que isto significa?
— Acho que sei... Mas... pensar dói... Portanto...
— Certo, certo. Acabamos com o monopólio do poder. Por que ficar sob um só tipo de governo e sob um só governo. Esta foi a primeira etapa. Uns dez anos depois, representantes das províncias, após muitas discussões, apresentação e dados, definiram que o sistema semiparlamentarista da província dos holandeses era o melhor. Por um tempo todos o adotaram. Mas não conseguimos ficar naquela monotonia por muito tempo. Então resolvemos repetir a experiência.
— Minha cabeça... está girando.
— Estou falando depressa de novo, não é? Vou devagar... Um escocês recém-chegado veio com a novidade. Era o ano de mil setecentos e sei lá o quê. Disse que era preciso acabar com a imaterialidade do estado. O estado deífico, meio etéreo, significa distanciamento do povo, favorece os abusos de poder, a corrupção, a irresponsabilidade. Esse sujeito, Patrick Shilton, aventou a possibilidade de entregarmos o governo a um grupo de pessoas capazes. Pagaríamos essas pessoas para que nos governassem. Seria seu trabalho, enquanto nos preocuparíamos com nossa vida.
— Mas não é... o que acontece... normalmente? Pagam-se impostos... e daí os salários aos... governantes e funcionários públicos.
— Mas Shilton queria que as empresas competissem: cada uma foi para uma província para mostrar serviço. Por exemplo, na província de Hispânia a empresa tinha um contrato de quatro anos. Nesse período devia cumprir as cláusulas do contrato. Se não o cumprisse, o contrato não seria renovado.
— Literalmente... um contrato social. Mas de qualquer forma... havia um estado... Pois quem decidia não... renovar com a empresa?
— O povo, oras. Cópias do contrato eram (e são) distribuídas à população. Cada um dá seu veredicto. O povo elege os contadores de “sins” e “nãos”, que divulgam o resultado.
Lucano gemeu e perguntou:
— E a justiça?... É privada também?
— Hoje em dia há juízes eleitos pelo povo. Mas continuamos a fazer experiências. Mas o sistema de estado privado vingou, sabe? As diferenças entre as províncias são sutis hoje em dia. No dia em que acabarem as diferenças então teremos encontrado o estado ideal. Como é chato este Brasil gigantesco vivendo só com um sistema de governo, imutável e incompetente.
— O estado hiperativo.
— Hã?
— A Candirúnia... O regime de vocês... O estado hiperativo... Como você.
— O estado hiperativo. Gostei. Melhor que esse modelo de estado modorrento de vocês ocidentais. Mas nós gostamos de falar em Estados Privados da Candirúnia. Pomposo, não? É um apelido do nosso país. Lá tudo é feito na base do profissionalismo. São profissionais na iniciativa privada e no governo. Aqui é o contrário: amadores no estado e no empresariado. E todos querendo tomar o dinheiro do contribuinte paradão. Como esse povo aceita tudo passivamente, Lucano? Tudo quanto é obra e empreendimento o empresário tem que reservar algum para um deputado, para um burocrata. Falseiam-se as faturas e quem paga a conta é o imbecil chamado povo. É por isso que o estado não quer deixar de interferir na economia. Quanto mais intervenção mais possibilidades de ganho para os donos do estado, Lucano. E o povo que é o estado. E o povo enquanto estado deveria cuidar de si mesmo. Mas o povo é o sujeito que não liga para a feridinha que está se transformando em câncer. O estado é uma perene metástase. O estado é um osso que os insaciáveis cães da elite jamais largarão por vontade própria.
— Se não me... engano... você falava sozinho... Falou em... em liberdade.
— Sabe como é, né? Essa prisão arbitrária, essa violência toda... De repente bateu uma vontade de escancarar tudo. De reivindicar liberdade para meu povo. Eu, particularmente, não explodiria bombas. Prezo muito a vida humana para ficar colocando uma ou várias em risco, entende? Eu estava meio transtornado e nem via que estava pensando alto. Acho que é isso.
— O Brasil também... esconde seu país?
— Você disse também? Quer dizer que você... Então esse é seu segredo. Por isso você também é suspeito.
— Sim... Agora... responda... por favor.
— Ah, claro, claro. Eles nunca disseram claramente o porquê. Mas todos nós candirunianos sabemos que o governo brasileiro, e antes da independência o português, temia que se espalhasse por este imenso território as idéias de experimentação, de tentativa e erro na busca de um sistema ideal de governo. O que sempre importou para os poderosos deste mundo, Lucano, é manter a forma clássica de dominação, de opressão dos menos favorecidos. O que vem acontecendo há tempos imemoriais é a evolução de uma única maneira de governar, que significa o aperfeiçoamento dos meios de exclusão da maioria do processo sócio-político-econômico no que tange à área decisório-funcional em favor de uma casta, de uma minoria que vem sempre gozando dos mesmos privilégios. O poder é para poucos, meu combalido amigo. Se podemos segurá-lo em nossas mãos, para que dividi-lo? Foi por isso que o Brasil baixou o pano entre nós e o mundo. Mas chega de falar de mim e de meu país. Agora quero saber tudo sobre o lugar de onde você veio, sobre o motivo que levou o Brasil a escondê-lo e se você teria coragem de iniciar um movimento pela libertação de seu povo.

sexta-feira, novembro 16, 2007

UMA SÚBITA DIGRESSÃO SOBRE A POLÍTICA

O primeiro mandamento de uma pessoa decente – ou que se pretende decente – deveria ser: “Jamais entrarei em um partido político”. E o segundo: “Nem mesmo simpatizarei com um partido político”.

Não prego a alienação, a entrega da política aos políticos ou o voto branco ou nulo. Pelo contrário. Apenas considero que a maneira mais pura, honesta, altruísta e sincera de se envolver com a política é não pertencer a qualquer partido, movimento ou tendência política.

Essa história de mandamentos invadiu meu combalido cérebro durante a exibição do programa eleitoral gratuito do PSB (dia 15/11/2007). Nele apareceram o cantor Fagner e o escritor Ariano Suassuna. O primeiro confessa que se imiscuiu a apoiar este ou aquele partido, esta ou aquela idéia e – o pior – este ou aquele candidato desde 1986. O segundo voltou a professar sua fé no socialismo.

Santa ingenuidade! Santa? Diabólica! Que candidato ou partido apoiado por Fagner nessas duas últimas décadas deixou de decepcionar a ele e ao eleitor que o apoiou? Que idéia defendida pelo cantor cearense sobreviveu à política rasteira quando seus pregadores chegaram ao poder? Quanto idealismo foi deixado de lado em favor do poder pelo poder e do conteúdo dos cofres públicos?

E que socialismo Suassuna vê no PSB, que hoje abriga uma miríade de políticos que já passaram por partidos que foram identificados mais com a direita e com o centro do que com a esquerda? Aliás, dá pra confiar no esquerdismo de qualquer partido deste país? Ou, para quem gosta, no “centrismo” ou no “direitismo” das nossas agremiações?

Ariano, Fagner e outros românticos talvez continuem embriagados por suas ilusões por uma questão de inércia – ou convicção mesmo, por que não? Mas o fato é que o mundo só vai ser mais justo e igualitário à medida que o ser humano for evoluindo, amadurecendo. Enfim, trata-se de um processo natural.

Sempre que uma pessoa e seus seguidores tentaram acelerar o processo – por meio de revoluções, golpes ou decretos –, o resultado foi o totalitarismo, a tragédia e, por fim, o efeito contrário, ou seja, o retrocesso.

O próprio amadurecimento da humanidade cuidará de dar cabo aos políticos da estirpe à qual estamos acostumados e nos levará a uma sociedade melhorzinha. Enquanto isso, o que podemos fazer de melhor é não ser de partido algum, não se intitular de direita ou de esquerda e, claro, não deixar de descer o cacete na politicalha. Senão, vamos ficar por aí bancando o inocente útil, que nem o Fagner e o Ariano Suassuna.

terça-feira, novembro 06, 2007

ARISTÓTELES OMORRIS É ENTREVISTADO - Parte 2

Não atendendo a pedidos, damos seqüência à publicação da entrevista que Aristóteles Omorris concedeu à revista Tapa Capital. Felizmente é a segunda e última parte do texto. E diga-se, en passant, que a edição em que saiu a entrevista com AO foi a de pior desempenho em bancas na história da revista, que, contam línguas ferinas e bem informadas, depois dessa está pensando seriamente em cerrar as portas.

Tapa Capital –
O senhor foi acusado de ter apoiado o golpe de 1964. O que o sen...
Aristóteles Omorris – Como “acusado”? O senhor é desinformado! Aliás, toda a imprensa e todos os historiadores o são! Eu TRAMEI o golpe de 64! (gritando) Eu fui o grande artífice daquele ato glorioso de nossa história. Devido ao comunismo deslavado que grassava no governo Jânio Goulart (o entrevistado não aceitou que o repórter o corrigisse. Para ele João “Jango” Goulart e Jânio Quadros eram a mesma pessoa...) eu chamei a alta cúpula das Forças Armadas até minha mansão. Em minha sala de estar, enquanto no telão passava o recém-lançado E o vento levou (desta vez o entrevistado ameaçou a agredir o repórter, que o interrompeu para dizer que o filme citado era da década de 1930), intimei os militares a despejar aquela corja do poder. Caso contrário eu sairia do país. Visivelmente preocupados, temerosos de que o já tão combalido Brasil viesse a ficar desfalcado de minha augusta presença, eles resolveram agir. Imediatamente repassei-lhes os planos para a tomada do governo e os nomes daqueles que deveriam assumir os principais cargos. Eles imploraram para que eu assumisse a presidência da República, mas eu disse que tinha assuntos mais importantes a tratar, mas que lhes arranjaria um tempinho para dar um ou dois conselhos aos novos mandatários. Dito isso, fui catar piolhos em Lorde Byron.

TC – Mas Joã... Quer dizer, Goulart não era comunista. Havia gente de esquerda em seu governo, mas não havia indícios de que ele planejava implantar o comunismo ou o socialismo pleno no país. O senhor conhece o marxismo, o comunismo e a evolução do socialismo?
AO – Meu jovem, vou perdoar sua ofensa porque você não sabe do que está falando e não conhece plenamente minha história. É claro que conheço todas as filosofias do mundo, desde Parmênides, o homem que criou o átomo (nesta altura o repórter já havia desistido de corrigir o entrevistado), até Caetano Veloso; de Prosópopes, o inventor da prosopopéia, até Paulo Coelho. Evidentemente Jango Quadros pretendia implantar o comunismo, afinal, seu cunhado era seguidor das idéias de Marcos, o alemão que também escreveu parte do Novo Testamento. (Omorris deve estar se referindo a Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul à época do golpe de 64 e cunhado de Jango. Quanto a Marcos, deve ter algo a ver com Marx, mas... deixa pra lá) Com isso, uma vez no poder, os comunistas pretendiam obrigar o povo a usar aqueles ridículos lenços vermelhos no pescoço. Isso eu não poderia permitir. Foi quando resolvi agir, em nome da moral e dos bons costumes.

TC – Em sua autobiografia, confessadamente escrita por seu macaco, Lorde Byron, o senhor afirma ter sido o mentor do projeto espacial norte-americano, que culminou na chegada do homem à Lua em 1969. Vou citar seu livro: “Desde o início do projeto, os meninos de Nixon vinham me fazer consultas sobre foguetes, cápsulas e efeitos da gravidade”. Mas como isso foi possível, se o projeto começou com os cientistas que o governo norte-americano, muito antes de Nixon, foi buscar na Alemanha nazista, como Von Braun, por exemplo?
AO – Meu Deus, não há limite para a ignorância humana? (transtornado) Os senhores são pobres cordeiros que, inocentemente, acreditam em tudo que lhes contam os jornais e a história. Daqui a pouco vão dizer que o Einstein não colava de mim nas aulas de teoria da relatividade... Vão dizer que não inventei o motor de popa e de proa... Vão dizer que não falei pro motorista da princesa Diana andar mais devagar... Vão dizer que não criei a Aids... Ah, tenha a santa paciência!

TC – O senhor se gaba de comer sempre nos melhores restaurantes, de receber caviar diretamente do presidente da Rússia, mas dois leitores nossos enviaram fotos em que o senhor aparece revirando latas de lixo na rua. Como o sen...
AO – Como ousa? (novamente vermelho, olhos esbugalhados e dentes arreganhados) Eu sei quem são esses leitores! São os malditos Pratão e Pipócrates, a dupla de invejosos, desonestos, bandidos, fracassados e canalhas prontos e acabados! Tenho certeza! Saiba o senhor que ouvi dizer que eles praticam hábitos de Sodoma, que não desprezam a pederastia, que...

TC – Por favor, senhor, não baixemos o nível de nossa entrevista...
AO – Ah, agora eu é que estou baixando o nível... O senhor é que veio com essa pergunta descabida, dando valor a boatos infundados e falsas evidências...

TC – Mas, senhor, nas fotos, que foram consideradas legítimas por diversos laboratórios respeitados daqui e dos Estados Unidos, aparecem o senhor, Lorde Byron e o senhor Tião Macalé. Este inclusive, após encontrar uma espinha de peixe numa lata, foi severamente repreendido pelo senhor por ter tentado esconder o, digamos, alimento, dentro de seu calção. O senhor chegou a atirar uma pedra nele.
AO – Não era uma pedra. Tratava-se de um material menos consistente, que eu também julgara ser uma pedra e... Ei, ei! O que estou dizendo? Não aconteceu nada disso! Trata-se de uma montagem, uma farsa!

TC – Então mudemos de assunto. Gostaria de...
AO – Chega, chega! (extremamente alterado) Esta entrevista está encerrada! Eu desperdicei valiosos minutos de minha atribulada e ocupada vida com os senhores e o que ganho em troca? Insultos, calúnias, ofensas e dissabores vários. Amanhã mesmo embarcarei para a Escandinávia, onde pretendo me recuperar deste triste episódio desfrutando de algumas semanas de merecido e raro ócio nos Alpes Suíços. De primeira classe, obviamente.

TC – Mas os Alpes Suíços ficam na...
AO – Cale-se! Já lho tinha mandado calar-se! Tião! Lorde Byron! Por favor, acompanhem estes senhores até a porta. Passar bem. (visivelmente constrangido, Tião Macalé conduziu o repórter à saída. Já Lorde Byron pulou sobre a câmera do fotógrafo, derrubou-a e começou a enfiar os dedos nos olhos do profissional)

quinta-feira, novembro 01, 2007

MAU-CARATISMO TRICOLOR

Em 1987 os treze maiores clubes do Brasil resolveram fazer um Campeonato Brasileiro paralelo ao da CBF. A primeira divisão, com a concordância da própria CBF, seria chamada de Módulo Verde, e contaria com os integrantes do então recém-fundado Clube dos 13 (Flamengo, Vasco, Botafogo, Fluminense, Corinthians, São Paulo, Palmeiras, Santos, Internacional, Grêmio, Cruzeiro, Atlético Mineiro e Bahia) e mais Goiás, Santa Cruz e Coritiba. O torneio foi batizado de Copa União e seu campeão também seria considerado o campeão brasileiro daquele ano. O presidente do Clube dos 13 era o então presidente do São Paulo, Carlos Miguel Aidar.

A CBF ficou com a organização dos módulos Amarelo, Azul e Branco (segunda, terceira e quarta divisões). Como os clubes de segundo escalão chiaram, a CBF propôs o cruzamento dos dois primeiros colocados do Módulo Verde com os dois primeiros do Amarelo para que só então fossem definidos o campeão e o vice do Brasil em 1987 - que também seriam os representantes do país na Copa Libertadores de 1988.

Claro que o Clube dos 13 não concordou com a manobra, feita na semana de estréia do Campeonato Brasileiro. Por unanimidade, TODOS os 16 participantes da Copa União decidiram que quem chegasse à grande final não cruzaria com os dois melhores do Módulo Amarelo. Como combinado inicialmente com a CBF, campeão e vice do país sairiam do Módulo Verde.

Nem em Portugal já se viu algo assim: o campeão nacional sair do cruzamento dos melhores da primeira com os melhores da segunda divisão! Em tese, o melhor da segunda é pior que o pior da primeira.

Pois bem: Flamengo e Internacional foram os finalistas da Copa União. Na primeira partida da final, em Porto Alegre, empate. Na segunda, Flamengo 1 a 0, gol de Bebeto. Flamengo, campeão brasileiro pela quarta vez, como o Brasil inteiro proclamou, como o Clube dos 13 havia chancelado no acordo original com a CBF, aprovado por todos os clubes, inclusive pelo São Paulo. Se fosse o tricolor paulista (ou qualquer outro integrante da Copa União) um dos finalistas, ele também não cruzaria com Sport e Guarani, os dois melhores do Módulo Amarelo (segunda divisão).

Mas a CBF disse que o que valia era a mudança que ela havia feito no regulamento, à revelia dos maiores clubes do país. Então Sport e Guarani foram a campo para esperar por Flamengo e Inter. Como estes não compareceram, os jogos entre os representantes da Segundona tornaram-se a "verdadeira" decisão do Campeonato Brasileiro de 1987. Deu Sport, que, no ano seguinte, ao lado do Guarani, protagonizou a mais vexatória participação brasileira na Libertadores.

Em 1992 o Flamengo voltou a ganhar o Brasileirão, agora de forma "oficial". Como foi seu quinto título da principal competição nacional, o rubro-negro reivindicou a posse definitiva da taça que desde 1975 era entregue aos campeões brasileiros. Pelo regulamento do torneio, ficaria de vez com o troféu o clube que conquistasse a divisão principal três vezes seguidas ou cinco vezes alternadas.

Só que a CBF, mesmo já com outra administração, recusou-se a enviar para sempre a taça à Gávea e resolveu guardá-la em um cofre da Caixa Econômica Federal. Desde então, o clube mais popular do país ostenta em sua imensa galeria de troféus, uma réplica daquela taça.

Eis que o tempo passou e na noite do dia 31 de outubro de 2007 o São Paulo conquistou seu quinto título do Campeonato Brasileiro da primeira divisão. Como todos foram títulos considerados "oficiais", a CBF avisou que vai tirar aquela velha taça do cofre e entregá-la de modo definitivo ao tricolor do Morumbi.

Até aí, tudo bem. Como até hoje a CBF não dá o braço a torcer, por não admitir seu erro (ou sua safadeza de 20 anos atrás), o lógico para ela é passar o troféu para as mãos tricolores. O problema é o São Paulo ficar com a taça e não a repassar a quem realmente tem o direito de ficar com ela.

Pior que a CBF é o São Paulo, que, ficando com a taça, está jogando no lixo o corajoso acordo entre os grandes clubes, que resolveram não aceitar as imposições estúpidas da entidade máxima do nosso futebol.

Para o Clube dos 13, o Flamengo é pentacampeão brasileiro. Como membro desse clube, o São Paulo deveria receber a taça e, em uma solenidade bancada pela entidade, fazer o repasse do troféu ao time carioca.

Mas o tricolor paulista resolveu agir como um oportunista, um descuidista, um trombadinha, em suma, um mau-caráter, para quem a ética, a grandeza e a magnamidade não passam de empecilhos à sua glória pessoal.

A partir de agora os dirigentes são-paulinos não podem nunca mais reclamar da corrupção nos mais diversos escalões da sociedade brasileira. Afinal, agora eles estão inseridos nesse contexto. Agora eles são uma porção de matéria escura a mais no espesso mar de lama e outras impurezas que envergonha os brasileiros de bem.

sexta-feira, outubro 26, 2007

ARISTÓTELES OMORRIS É ENTREVISTADO - Parte 1

Caro leitor, não é do nosso feitio “chupar” matérias de outros órgãos de comunicação, mas este é um caso especial. Trata-se de uma entrevista concedida por um dos nossos mais reles... quer dizer: por um dos nossos maiores colaboradores, o colunista Aristóteles Omorris. Fomos autorizados pela prestigiosa revista Tapa Capital a publicar na íntegra a entrevista abaixo, que é uma forma de o nosso leitor (perdão por isso, leitor) conhecer melhor essa figura ímpar, esse monstro (de feiúra) do jornalismo brasileiro. Como a reportagem foi muito longa, preferimos dividi-la em duas partes. Afinal, quem quer morrer de overdose de Aristóteles Omorris?


O que é Aristóteles Omorris?

Por Argemiropípedes Raimundopolos

Eram 4 horas de uma tarde abafada na favela de Paraizópolis, no dia em que foi registrada a maior taxa de poluição no ano na capital paulista. Fomos instruídos – Paulinho Cegueta, fotógrafo, e eu – a chegar à “suntuosa residência” (como o próprio dono a qualificara) de nosso entrevistado pontualmente às 9 da manhã. Nesse horário fomos recebidos por um jovem de seus no máximo 20 anos, afrodescendente, boca pouco povoada de dentes. “O senhor Omorris ainda se encontra dormindo. Vocês esperam?”, perguntou o rapaz. Ao meio-dia, Aristóteles Omorris, rosto completamente amassado, com um pijama que deixa à mostra a barriga que escorria cintura abaixo, cruzou a sala e nem sequer olhou para os visitantes. O rapaz correu à cozinha para servi-lo. Perguntei se podíamos começar a entrevista. O dono da casa disse alguma coisa ao jovem. O tom era de aspereza, mas não ouvimos o que foi dito. “O senhor Omorris pediu para dizer que não dá entrevistas antes de almoçar. No momento ele se encontra degustando seu café-da-manhã. Vocês esperam?” Por volta das 13 horas o colunista foi até os fundos da casa, mais precisamente, ao setor coberto de lona e papelão, e começou a gritar: “Lorde Byron! Byron! Venha cá, bastardo!” Então o famoso macaco de Aristóteles Omorris não era uma lenda? “Não. O bichinho existe”, afirmou Tião Macalé, como era conhecido o rapaz que nos recebeu. “Olha a marmita!”, bradou uma voz de garoto lá fora. Eram 3 horas da tarde e chegava o almoço do nosso anfitrião, que finalmente deixou suas conferências com Lorde Byron. “A dona Violeta falou que amanhã não tem marmita se o senhor não pagar os três meses atrasados”, avisou o entregador. Omorris nem olhou para ele. Apenas fez um gesto com as mãos, típico de quem manda alguém embora. Macalé foi atrás do garoto e, no meio da rua, chegou quase a ajoelhar-se durante sua argumentação. Depois do almoço, Aristóteles chamou seu ajudante, que logo veio a nós. “O senhor Omorris vai fazer um leve repouso e deverá atendê-los em seguida. Vocês esperam?” Eram 4 horas de uma tarde abafada na favela de Paraizópolis, no dia em que foi registrada a maior taxa de poluição no ano na capital paulista. Nesse momento, enfim, Aristóteles Omorris, trajando um smoking que claramente lhe era alguns números abaixo de seu tamanho, além de ostentar vários remendos, entrou na sala e ainda sem olhar para os visitantes, sentou-se em uma imensa e carcomida poltrona e perguntou, com ar imperial: “Em que posso ajudá-los?”

Tapa Capital O senhor nunca falou de sua origem, onde nasceu, onde cresceu, como foi sua infância, seus pais, irmãos (se os teve). O senhor poderia falar sobre isso?
Aristóteles Omorris – Não.

TC – Qual é sua formação escolar?
AO – Não gosto de falar sobre isso.

TC – Por que não?
AO – Sempre fui muito injustiçado na escola. Como fui sempre um ser à frente de seu tempo, professores, diretores e os malditos coleguinhas não me entendiam. Eu era um aluno que não aceitava o que estava escrito nos livros. Assim, não estudava e não fazia as tarefas exigidas pelos professores. Nas provas, eu colocava as minhas verdades, que é o que todo mundo devia seguir. Infelizmente os canalhas não aceitavam e me reprovavam.

TC – Alguns de seus antigos colegas disseram que o senhor não estudava e não fazia as tarefas para poder ir para a rua, jogar pedras em pessoas, riscar carros com tampinhas de garrafa, ser flanelinha de estacionamento, pedir dinheiro no sinal, entre outras atividades não exatamente abonadoras...
AO – (irritado) Calúnias! Calúnias! Quem disse isso? Vou processar um por um! (vermelho)

TC – Quer dizer que é verdade que o senhor não completou seus estudos?
AO – Quer dizer que eu me recusei a fazer o caminho dos medíocres. A escola só me atrasaria. Faculdades são prisões do pensamento. Eu queria voar cada vez mais alto, deixar meu intelecto alcançar seu destino, que é expandir ao infinito e abraçar o universo! (exaltado, braços aberto e olhando para o teto)

TC – Por isso o senhor parou de estudar no que hoje equivale ao primeiro ano do ensino fundamental, depois de 13 reprovações?
AO – Mudemos de assunto.

TC – Tudo bem. Falemos então das polêmicas do momento. O senhor é contra ou a favor da liberação do aborto?
AO – (pausa) Veja bem... (pausa um pouco mais longa. De 30 minutos) Engraçado... (outra pausa igual) Meu pai me disse que minha mãe foi fervorosamente contra o aborto. Dizia que era sempre a favor da vida e coisa e tal. Mas, estranhamente, certo dia ela passou a ser favorável ao aborto. Virou até militante da causa.

TC – Quando foi isso?
AO – Depois que eu nasci.

TC – (pausa para constrangimento) Mas o senhor não respondeu qual é sua posição sobre o assunto...
AO – Veja bem... (irritante nova pausa de 30 minutos) Eu acho que tendo a ser contra. Se minha mãe fosse a favor antes do meu nascimento, talvez o mundo tivesse perdido a chance de ter caminhando sobre si um ser como eu. Quantos outros Aristóteles Omorris não estaríamos perdendo se os abortos passassem a ser feitos a torto e a direito, você não concorda?

TC – (pausa para novo constrangimento e uma limpadinha de garganta) Mas o senhor é favorável a algum tipo de controle de natalidade?
AO – A priori sim. Mas muitas vezes o exato oposto me deixa muito triste. (pausa para choro. Sem lágrimas) Tenho muitos casais amigos entre a elite do poder mundial que não conseguem ter filhos. Tentam todos os tipos de tratamento com os melhores médicos do mundo inteiro e nada. Meu conselho para eles é o seguinte: empobreçam!

TC – Como assim?
AO – Ora, ora... Não é fato de que a taxa de natalidade entre os pobres é altíssima? Não é fato que basta encostar de leve numa mulher pobre – melhor ainda se for negra – que ela logo engravida? Então!? Olá, meu bom amigo rico: deixe seu dinheiro comigo, transforme-se num pobre e tenha uma família quilométrica.


Fim da primeira parte

terça-feira, outubro 23, 2007

FUTEBOL: UM PROBLEMA RECORRENTE

O artigo abaixo eu escrevi em 2003. Quatro anos se passaram e eu não preciso queimar meus parcos neurônios para abordar o mesmo assunto, pois nada mudou de lá pra cá. Como este texto é inédito para este blog (já que o cometi originalmente para a Folha do Sudoeste), "brindo" a todos com sua postagem.



A temporada da Raposa

Como prometido no festival de besteiras... ou melhor, como prometido no artigo anterior (também publicado na Folha do Sudoeste, no já longínquo 2003), vamos usar exemplos concretos para mostrar como se pode implantar um calendário em que os times pequenos não fiquem desativados por quase 90% da temporada futebolística. Tomemos como paradigma a Jataiense, que neste ano participou do Campeonato Goiano da Primeira Divisão por menos de dois meses. E só. O período de março a dezembro é um eterno coçar, uma estúpida espera pela próxima edição do “Goianão”.
Pelo calendário proposto aqui mesmo neste espaço, a Raposa do Sudoeste iniciaria suas atividades em 15 de julho. Faria sua pré-temporada, com treinos e amistosos, até meados de agosto, quando começaria a primeira fase do Campeonato Goiano da Primeira Divisão – sem os clubes goianos que jogam o Campeonato Brasileiro (há quatro anos o Goiás estava na Série A, enquanto Vila Nova e Anapolina disputavam a B). O modelo ideal seria o de pontos corridos em turno e returno durante os seis meses reservados para os estaduais. Se os clubes optarem por um torneio dividido em fases, que fique registrada no regulamento uma norma que evite a eliminação de qualquer time antes que a fase inicial complete cinco meses de disputa.
Terminada a fase inicial do Goianão, em meados ou final de fevereiro do ano seguinte (dependendo da data do carnaval), a Jataiense, caso tenha chegado em primeiro ou em segundo lugar, estará classificada para a Copa do Brasil do ano seguinte e vai automaticamente para a fase regional do Campeonato Brasileiro da Série C, que começa já em março. Estaria ainda garantida na fase decisiva do Campeonato Goiano, onde, nos dois últimos meses da temporada, enfrentaria Goiás, Vila e Anapolina – além dos outros times de melhor colocação na fase inicial.
Na primeira fase da Série C nacional, com a ajuda da CBF em relação às despesas, a Raposa enfrenta o outro classificado goiano e mais os campeões e vices de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal, em ida e volta, todos contra todos, passando os dois primeiros colocados para a segunda fase. Ou seja, são mais 14 jogos garantidos na temporada, o que representa no mínimo mais 14 datas – ou quase três meses de atividade, utilizando-se dois ou três meios de semana.
Na segunda fase, já em nível nacional, com 16 classificados, dois de cada chave regionalizada, começa o mata-mata, com confrontos sorteados e passagens aéreas financiadas pela CBF. Ao final, em junho, os dois primeiros sobem para a Série B do Campeonato Brasileiro de forma direta, enquanto as equipes que terminarem do terceiro ao sexto lugares ainda terão a chance de subir pelo confronto direto e eliminatório, em duas partidas, com os times da Série B que terminarem do 19° ao 22° lugares. A definição do quinto e do sexto melhores colocados se daria por critérios técnicos ou pelo confronto entre os perdedores das quartas-de-final. Pelo menos essa decisão eu deixo para os clubes e/ou a CBF...
Suponhamos – e torçamos – que a Raposa tenha subido para a Série B nacional depois da disputa de nossa hipotética Série C. Assim, na temporada seguinte ela passaria o ano todo disputando essa competição, não precisaria participar da fase inicial do Campeonato Goiano (a não ser com o time reserva, somente para movimentar todo o elenco) e ainda jogaria a Copa do Brasil, quando teria a oportunidade ímpar de enfrentar clubes do porte de Flamengo, Corinthians e todo o resto da turma do Clube dos 13.
Caso o clube não seja campeão ou vice da primeira fase do estadual, ele ainda assim não seria relegado à inatividade. Juntamente com os outros eliminados e talvez com os times da segunda e terceira divisões do estado, ele jogaria uma seletiva (regionalizada) para a Copa do Brasil do ano seguinte, que, ao final apontaria os últimos 26 participantes da competição – um punhado de cada chave regional.
Em meados de junho viriam as tão merecidas férias para a Jataiense e todos os outros clubes. Ficaríamos apenas 30 dias sem ver nosso time funcionando a todo vapor. Afinal, a temporada da Raposa passaria a durar quase um ano inteiro.

domingo, outubro 07, 2007

TRECHO DO PROSCRITO "O PARTIDO DO INDIVÍDUO"

O trecho abaixo faz parte de uma espécie de viagem onírica empreendida pelo protagonista do livro O Partido do Indivíduo depois de sofrer um acidente que o levou ao coma.


Entraram num belo apartamento de Copacabana. A família reunida assistia compungida às notícias do mundo.
— Papai — disse a garotinha, depois de assistir a uma cena de latro­cínio —, por que aquele moço fez pêi-pêi no outro e levou aqueles papeizi­nhos que estavam dentro da gaveta?
— Se você morasse na terra dele, minha filha, só com aqueles papeizi­nhos você poderia comprar comida no mercado da esquina. Comprar é trocar papel ou metal por qualquer coisa, mais ou menos assim. Seu avô lembra como era antes da Assembléia.
— Comprar? Trocar comida por papel? Mas o seu Menezes entrega pão e leite pra gente sem pedir nada em troca. E quem decide quantos pedaços de papel vale um pão e quantos vale um carro?
— Desculpe-me, Sonho — disse Laszlo —, mas essa é difícil de engo­lir. Em algum ponto do sistema deve haver dinheiro. Quem deu este apartamen­to a esta família, como eles conseguiram um carro, o que ganha quem produz um carro e o entrega de graça? O governo dá tudo? Mas como, se o governo vive sem impostos?
— Ai, uma mente tão jovem e já tão corrompida — suspirou Sonho. — Sociedade sem dinheiro: de súbito, acabaram-se as classes. Por decreto, de repente cédulas, moedas, talões de cheque, títulos, ações já não valiam na­da. A propriedade privada ficou. Quem já vivia confortavelmente, continuou na mesma. Os ex-mais pobres reuniram-se em cooperativas e, nos terrenos doa­dos pelo governo, construíram residências a seu gosto. O material também foi doado: por que os fabricantes de materiais de construção os segurariam se não iriam ganhar nada com isso? Aliás, os empresários decidiram dividir a propriedade de suas empresas — comércio, indústria, serviços — com seus ex-empregados, agora elevados à categoria de seus iguais. O Brasil passou a fabricar de tudo. Sem burocracia (que foi feita para tirar dinheiro das pes­soas pelos meios mais legais possíveis), abriam-se pequenas, médias e gran­des empresas aos borbotões, todas de propriedade coletiva. Não havia disputa pela direção, pois não havia salário. As pessoas passaram a trabalhar para si próprias e para os outros. Os agricultores trazem seus produtos para a cidade e oferecem-nos às pessoas. Depois passam pelas “lojas” e levam o que precisam. Como, no fundo, é uma sociedade igual à de seu plano, há uma mino­ria aética, um tanto quanto psicopática, marginal, que começou a promover saques ou retiradas de bens de forma vultosa demais. No início aconteciam abusos — pessoas retiravam, por exemplo, quatro, cinco, dezenas de carros, numa ganância inercial. Por isso, não foi extinta a polícia nem a justiça. Estas passaram a funcionar perfeitamente bem, pois seus deslizes históricos sempre foram motivados pelo poder econômico. Sem dinheiro, sem cobiça. Quase sempre. Então, com um incidente aqui, outro ali, o Brasil deste mundo vai levando uma vida até que agradável. Pena que os outros países estejam meio que propensos a não adotar este tipo de sociedade depois que vencer o prazo.
— Por quê? O que ocorre aqui, eu percebo, é um acordo informal entre as pessoas: todos sentem que podem ter tudo o que precisam se fizerem a sua parte. O sujeito que fabrica coadores de café sabe que em troca de seu tra­balho ele terá seu carro, sua casa, sua pasta de dente, seu sapato... Ele tem a consciência tranqüila. Quem não trabalha mas usufrui do resultado do trabalho alheio talvez viva com remorsos. Uma sensação desagradável. Passar uma vida inteira sentindo culpa é pior que prisão perpétua. Há claro os so­ciopatas, psicopatas, os preguiçosos convictos, os malandros inconseqüentes. Mas por que acabar com essa experiência? Ou melhor, por que não estendê-la ao resto do mundo?
— Simples. Os países desenvolvidos, em 1950, acreditavam sinceramente neste modelo, criado por um dissidente indiano. Escolheram o Brasil, além dos motivos que já citei, pela pequena elite que o país possuía: haveria menos pessoas ricas para protestar. Muitas foram para o exterior antes que abolissem o dinheiro. Acontece que a elite dos países industrializados au­mentou sensivelmente nesses quase cinqüenta anos. Resultado: há uma pressão gigantesca contra a brasilização do mundo. Embora as classes médias e baixas de todo o planeta estejam plenamente favoráveis, empresários, líderes de seitas religiosas, banqueiros, traficantes de drogas e mesmo a maior parte dos políticos posicionam-se contra, criando milhares de obstáculos, empeci­lhos e tecnicalidades. Onde já se viu um Rockefeller deixar seu perfumado, climatizado, embonecado escritório para apertar parafuso seis ou oito horas por dia?, costumam argumentar os elitistas. Esquecem-se de que funções exe­cutivas não serão extintas, nem a propriedade privada. Rockefeller não per­deria nada: suas empresas continuariam suas, permaneceria em seu cargo, se quisesse. Apenas deixaria de receber dividendos, fazer retiradas. Em contra­partida, não precisaria mais preocupar-se com a folha de pagamento. Aí eles argumentam que Rockefeller ajuda muita gente através de suas fundações fi­lantrópicas...
— Ora, sem a demanda por dinheiro para sobreviver, quem necessitaria de entidades filantrópicas?
— Correto. Mas sem pobres para viver a sua custa, como você encobriria com atos “caridosos” a sua verdadeira compulsão por dinheiro, por lucro? Como redimir sua alma gananciosa?
— Que lástima. Pelo menos o Brasil poderá continuar vivendo sem di­nheiro depois de vencido o prazo, não? O que foi uma experiência poderá tor­nar-se perene?
— Bem, há boatos de que as grandes multinacionais estão de olho gor­díssimo sobre o “mercado virgem” do Brasil do próximo século.
Numa contração facial, Laszlo revelou todo seu desapontamento. Quando piscou, já estava num plano diferente. Era um lugar calmo, de ar puro, com jeito de cidade pequena. As ruas eram limpas, os carros respeitavam as leis de trânsito, pessoas conversavam pelas calçadas, pelos alpendres.
— Este mesmo ponto geográfico em seu mundo — explicou Sonho — cor­responde a uma das maiores favelas de São Paulo. Setor de onde surgem notícias de chacinas, de ações de justiceiros e de batidas da polícia em busca de bocas de fumo. Este lugar, em seu plano, também seria lindo assim caso tivesse ocorrido lá o que aconteceu aqui.
— Neste mundo, o Brasil é que é desenvolvido, é isso?
— Digamos que neste mundo o Brasil é mais humano. Como em seu Congres­so e em seu governo, houve graves crises político-econômico-institucionais por aqui. Em sua dimensão, foi feita uma limpeza parcial no quadro político: alguns personagens daninhos à sociedade foram para o ostracismo, escorraça­dos ou pelo público ou pela via institucional — ou por ambos. Outros, po­rém, permanecem articulando, montando seus esquemas, defendendo seus inte­resses particulares e de seu grupo em detrimento do anseio popular. Em mui­tos casos houve uma mera troca de nomes: a prática continuou igual. Neste plano, contudo, um lance fortuito revelou todos os conluios, maquinações, tramóias de um até então intocável senador, cujas ligações açambarcavam não apenas a esfera política, como também amplos setores da sociedade. Ele não caiu sozinho. Puxou consigo uma série de luminares, astros, empresários-mo­delo, homens do ano e uma miss Brasil, coitada. O povo, num primeiro momen­to, ficou mudo. Quem ainda tinha alguma inocência, deixou de tê-la no momen­to em que o último tubarão foi para a frigideira. Revoltado contra os sécu­los de improbidades, iniqüidades, injustiças e imoralidades que em seu nome foram exercidas, o povo, também remoendo-se devido a sua mistura de ingenui­dade e conformismo, teve sua taliônica vingança nas eleições seguintes. Ne­nhum político com mais de quatro anos de carreira foi eleito; nenhum candi­dato nem de leve ligado a qualquer um dos caídos foi eleito; nenhum político com o mais leve acento demagógico foi eleito; todos os candidatos que nega­ram-se a fornecer sua lista de doadores e a quantia doada foram rejeitados.
— Então como foram preenchidos os cargos públicos? — perguntou Las­zlo, meio em tom de mofa.
— Foram eleitos os melhores — ou pelo menos aqueles que os eleitores consideraram os menos piores. Gente que nunca pensara em entrar para a política entrou. E ganhou. Pessoas com reputação ilibada ascenderam ao poder. Verbas que sumiam deixaram de desaparecer; obras que não acabavam foram fi­nalizadas; especialistas foram colocados nos lugares antes ocupados por po­líticos e apaniguados; os corruptos foram sumariamente demitidos; os suspei­tos licenciados até que provassem sua culpa; em detrimento do câmbio, da bolsa, da captação de dinheiro especulativo, optou-se por uma guerra contra a exclusão social como principal meta dos governos, sem descuidar de aspec­tos secundários como o câmbio, a bolsa e a captação de dinheiro especulati­vo. O primeiro sinal visível de mudança neste lugar, Laszlo, foi a chegada do asfalto e do saneamento básico. Logo percebeu-se que a vila esvaziava-se mais durante todo o dia: as pessoas saíam para trabalhar e, à noite, os ou­trora desocupados, ex-boêmios, ex-traficantes, ex-assaltantes, ex-toxicôma­nos, tinham a opção de freqüentar as novas e equipadas escolas do setor, onde os professores eram dignamente pagos. Sempre há quem não adapta-se ao novo tipo de vida: traficantes, assaltantes e toxicômanos empedernidos, ago­ra em menor número e por isso mais facilmente identificáveis, eram encami­nhados às respectivas instituições por eles responsáveis. Quarenta por cento eram devolvidos “limpos” à sociedade. Os outros, infelizmente, eram privados da liberdade. Aos poucos foram surgindo bons carros por aqui. As velhas ca­sas de pau-a-pique ou de plástico foram sendo substituídas por moradas de­centes. Então chegou um certo dia em que tudo ficou assim, do jeito que você está vendo.
— E os políticos corruptos nunca voltaram? E dos novos nenhum corrom­peu-se?
— Tendo caviar sempre à disposição, quem preferiria jiló? Não, o povo experimentou e gostou. É verdade que houve ensaios de improbidade entre os novos governantes, mas bastava uma leve suspeita para que seus próprios pa­res pressionassem o acusado a renunciar, em casos flagrantes, ou a pedir licença para que fosse investigado. Em dois casos, homens públicos foram reconduzidos a sua posição.

quinta-feira, setembro 27, 2007

DICA DE LIVRO: A INVENÇÃO DE MOREL


O escritor argentino Adolfo Bioy Casares foi muito mais do que o grande amigo do mito e compatriota Jorge Luis Borges, com quem escreveu o delicioso Seis problemas para Dom Isidro Parodi. Bioy mostrou toda a sua maestria em A Invenção de Morel, escrito durante a Segunda Grande Guerra.
A obra não pode ser reduzida ao rótulo de realismo fantástico, modalidade que grassa com mais desenvoltura pela América Latina. Seu livro é muitas vezes chamado de policialesco, mas, como diz o grande crítico Otto Maria Carpeaux, no posfácio da obra, A Invenção de Morel é ficção científica. E de primeiríssimo time.
Para quem gosta de Jornada nas Estrelas (Star Trek), a leitura do livro de Bioy pode apresentar uma surpresa: a antecipação dos holodecks, as salas de recreação do futuro (pelo menos na série), em que ambientes e pessoas são recriados com extrema fidelidade - ao ponto de ter havido episódios em que seres de carne e osso apaixonaram-se por hologramas. Os holodecks, ao contrário do que pensa a maioria dos fãs normais de Star Trek, surgiram pela primeira vez no desenho animado da série (1973). Eles foram popularizados pela Nova Geração (1987-1994) e utilizados ad nauseam em Deep Space Nine e Voyager.
Mas o assunto é A Invenção de Morel. E ninguém mais apropriado para apresentar o livro que Jorge Luis Borges, que escreveu o prefácio abaixo:
Por volta de 1882, Stevenson anotou que os leitores britânicos tinham certo desdém pelas peripécias e julgavam hábil escrever um romance sem argumento ou de argumento infinitesimal, atrofiado. José Ortega y Gasset - A desumanização da arte , 1925 - trata de justificar o desdém anotado por Stevenson e estabelece, à página 96, que "hoje em dia, dificilmente será possível inventar uma aventura capaz de interessar a nossa sensibilidade superior" e, à 97, que essa invenção "é praticamente impossível". Em outras páginas, em quase todas as outras páginas, advoga o romance "psicológico" e opina que o prazer das aventuras é inexistente ou pueril. Tal é, sem dúvida, o parecer comum em 1882, em 1925 e ainda em 1940. Alguns escritores (entre os quais tenho o prazer de contar Adolfo Bioy Casares) julgam razoável dissentir. Resumirei aqui os motivos dessa dissidência.
O primeiro (cujo ar de paradoxo não quero destacar nem atenuar) é o intrínseco rigor do romance de peripécias. O romance costumeiro, "psicológico", tende a ser informe. Os russos e os discípulos dos russos demonstraram até o fastio que ninguem é impossível: suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram a ponto de se separarem para sempre, delatores por fervor ou por humildade... Essa liberdade plena acaba por equivaler à plena desordem. Por outro lado, o romance "psicológico" também se pretende romance "realista": prefere que esqueçamos seu caráter de artifício verbal e faz de toda vã precisão (ou de toda lânguida vagueza) um novo toque verossímil. Há páginas, há capítulos de Marcel Proust que são inaceitáveis como invenções, aos quais, sem sabê-lo, nos resignamos como ao insípido e ocioso de cada dia. O romance de aventura, ao contrário, não se apresenta como transcrição da realidade: é um objeto artificial que não admite nenhuma parte injustificada. O temor de incorrer na mera variedade sucessiva do Asno de ouro , das sete viagens de Sinbad ou do Quixote impõe-lhe um rigoroso argumento.

Aleguei um motivo de ordem intelectual; há outros de caráter empírico. Todos tristemente murmuram que nosso século não é capaz de tecer tramas interessantes; ninguém se atreveu a verificar que, se alguma primazia tem este século sobre os anteriores, essa primazia é a das tramas. Stevenson é mais passional, mais diverso, mais lúcido, talvez mais digno de nossa absoluta amizade que Chesterton; mas os argumentos que conduz são inferiores. De Quincey, em noites de minucioso terror, mergulhou no coração de labirintos, mas não cunhou suas impressões de unutterable and self-repeating infinities em fábulas comparáveis às de Kafka. Anota com justiça Ortega y Gasset que a "psicologia" de Balzac não nos satisfaz; o mesmo cabe anotar de seus argumentos. A Shakespeare, a Cervantes agrada a antinômica idéia de uma moça que, sem perder a formosura, consegue passar por homem; esse móvel não funciona para nós... Julgo-me livre de toda superstição de modernidade, de qualquer ilusão de que ontem difere intimamente de hoje ou diferirá de amanhã; mas considero que nenhuma outra época possui romances de tão admirável argumento como The Turn of the Screw, como Der Prozess, como The Invisible Man, como Le Voyageur sur la Terre, como este que logrou escrever, em Buenos Aires, Adolfo Bioy Casares.
As ficções de índole policial - outro gênero típico deste século que não é capaz de inventar argumentos - relatam fatos misteriosos que um fato razoável logo justifica e ilustra; nestas páginas, Adolfo Bioy Casares resolve com felicidade um problema talvez mais difícil. Desfralda uma odisséia de prodígios que não parecem admitir outra chave exceto a alucinação ou o símbolo, e plenamente os decifra mediante um único postulado fantástico, mas não sobrenatural. O temor de incorrer em prematuras ou parciais revelações me proíbe o exame do argumento e das muitas delicadas sabedorias da execução. Basta declarar que Bioy renova literariamente um conceito que Santo Agostinho e Orígenes refutaram, que Louis-Auguste Blanqui meditou e que disse, com música memorável, Dante Gabriel Rossetti:

I have been here before, But when or how I cannot tell: I know the grass beyond the door, The sweet keen smell, The sighing sound, the lights around the shore...
*

Em espanhol, são infreqüentes e mesmo raríssimas as obras de imaginação meditada. Os clássicos exerceram a alegoria, os exageros da sátira e, por vezes, a mera incoerência verbal; de data recente, não recordo nada senão algum conto de As forças estranhas e algum outro de Santiago Dabove, esquecido com injustiça. A invenção de Morel (cujo título alude filialmente a outro inventor ilhéu, Moreau) transporta para nossas terras e para nosso idioma um gênero novo.

Discuti com o autor os pormenores da trama e a reli; não me parece uma imprecisão ou uma hipérbole qualificá-la de perfeita.

Buenos Aires, 2 de novembro de 1940
* Estive antes aqui, / Mas quando e como não sei: / Conheço a relva além da porta, / O perfume doce e penetrante, / As luzes pela costa, os sons murmurantes... [N.T.]

sexta-feira, setembro 21, 2007

ARISTÓTELES OMORRIS, O POLÍTICO



De nada, Renan

Aristóteles Omorris

Detrito Federal – Minha incomensurável legião de leitores há de compreender as razões de minha ausência deste espaço nos últimos meses. Sei que muitos chegaram a cometer atos de desatino devido à falta de leitura de meus textos (chegaram a mim inclusive alguns relatos de suicídios bem-sucedidos).

Mas todo sacrifício é válido e aceito quando a causa é nobre. Vidas foram perdidas? Sim, foram. Mas o importante é que consegui alcançar meu objetivo, que era a absolvição de um político honesto e inocente.

Apesar das ridículas pressões do meu editor para que eu voltasse ao trabalho (imagina: só pra cumprir um contratinho de parcos milhões de dólares...), mantive-me fiel à pessoa que praticamente criei para a política. E pelo qual sempre fui muito bem recompensado... Tudo o que ele sabe foi aprendido por meu augusto intermédio.

Embora muitos não saibam, tenho uma extensa folha corrida de (bons) serviços prestados à sociedade. Sou jovem, mas, por ter começado na política muito cedo, tive o privilégio de ter vários bons professores nessa nobre arte. Meus amigos Pôncio Pilatos, Maluf, Joaquim Silvério dos Reis, Luiz Estevão, Goebbels, Cacciola, Jáder e Ronald Biggs sempre foram meus incentivadores e fontes de inspiração.

Sempre gostei de atuar nos bastidores. Por isso jamais ocupei altos cargos, apesar do apelo insistente dos meus amigos para que eu fosse, no mínimo, presidente dos Estados Unidos. Contentei-me em ajudar meu amigo Bushinho a vencer – com justiça – as eleições na Flórida.

Hoje, passados alguns anos, posso confessar minha participação em alguns fatos que ficaram na história. Por exemplo: fui eu o mentor da tomada de Constantinopla pelos turcos. Tomar coisas sempre foi o meu forte, desde os tempos do jardim de infância. Aliás, por minha causa foi criado aquele adágio popular: “Mais fácil que tomar doce da mão de uma criança”.

Também fui eu que arquitetei a tomada da Bastilha. Na boa e velha mão grande, quando não tinha ninguém olhando, fui lá e tomei a Bastilha dos ricos e a entreguei aos pobres (e mal-cheirosos) franceses. Em troca recebi, de muito bom grado, mesmo tendo dito que não precisava, algumas coisinhas retiradas do Palácio de Versalhes. Muita coisa derreti para financiar a indústria de guilhotinas, com as quais mandamos para o vinagre muitos daqueles pobres aos quais eu havia repassado a Bastilha. Fiquei no lucro, no final, que é o que importa.

Os senadores brasileiros requisitaram meus serviços depois de uma operação que logo se tornaria lendária. Ao saber que seriam liberados dois bilhões de dólares dos países ricos para combater a mortalidade infantil, a Aids e a miséria na África, coloquei em ação todos os meus talentos para que esses recursos fossem revertidos para fins mais necessários.

Ao conseguir desviar a verba para meus amigos influentes, aboletados nos gabinetes de nações pacíficas, como Irã, Paquistão, Coréia do Norte, Líbia, Síria, e para organizações do naipe de Al Qaeda, Hizbollah, ETA, Farc, Comando Vermelho, entre outras, impedi que uma soma tão alta fosse desperdiçada de forma tão estúpida.

Agora, feliz por ter salvado a pele de mais uma pessoa pura, honesta e unicamente preocupada com o bem-estar da população, posso pedir licença (pedir não, exigir) para um mais que merecido descanso. Aliás, já escrevi demais para quem ganha tão pouco.

Aristóteles Omorris é ex-coroinha, ex-sacristão, ex-seminarista e excomungado

quinta-feira, setembro 13, 2007

AH, O SENADO...

Sobre Lula, Renan e outras mazelas

Não que o Senado tenha dado as costas para a sociedade. Os partidos e seus membros é que fazem isso desde... desde... desde sempre, né? Desde que o primeiro valentão das cavernas nomeou-se chefe dos companheiros.

Molusco-Mor e seus comparsas, com El Bigodón e La Mocrea na linha de frente, ao trabalhar pela salvação do Pau-de-Galinheiro alagoano, somente repetiram o milenar comportamento da elite-ora-no-poder, não importando de que “ideologia” sejam os poderosos de plantão.

Em tese, partidos políticos são agremiações que agregam pessoas com ideologia mais ou menos comum com o objetivo de chegar ao poder para trabalhar em prol da sociedade.

Só que na prática os partidos não passam de quadrilhas com estatuto, cujos membros só pensam em si mesmos. Para eles a ideologia é apenas um pretexto, uma muleta e até um sofisma para justificar seus atos lesivos à lei, à ética, aos cofres públicos e aos bons costumes.

A absolvição de um canalha é só mais um capítulo da eterna e triste história das mentalidades. Mais uma prova de quão baixos estamos na escala evolutiva.

quarta-feira, setembro 12, 2007

TRECHO DE "A CONFRARIA DOS HOMENS DE BEM"

Na véspera da reunião da Confraria, Abel foi com seus agora subordina­dos ao Le Boutècque. Dizia que reservava pelo menos um dia por semana aos amigos pobres. “Para não perder de todo minha humanidade”, brincava. À mesa do bar, naquela noite recebeu a inesperada abordagem de sua irmã, Ione. Séria, sem olhar para os acompanhantes do irmão, disse-lhe ao ouvido:
— Mamãe está um pouco adoentada. Não sei por quê, mas ela sente sua falta. Você bem que podia dar uma pequena alegria para ela, para variar.
A resposta foi um leve aceno vertical de cabeça.
— Quem era aquela? — perguntou Cepukas.
— Minha irmã. Gostou? Leva para você. Tanto lugar para ela ir, tinha que vir com o retardado do namorado dela justo aqui.
— Você é daqueles que detestam parentes, não? — disse Paula Chagas.
— Longe de mim. Não detesto. Evito. O bom parente não liga, não visi­ta, não se hospeda em sua casa. Não pede emprestado. Empresta. Como não existe o bom parente, melhor evitar essa raça.
— Cadê o poema que você prometeu, Abel? — cobrou Febo Lício.
— Ah, sim, aqui está. Queria que vocês fizessem algo bem paulinho-da-viólico com ele, certo? Diz assim

Apesar de tê-lo visto
A tosar o pêlo liso,
Escrever no barro frio,
Descrever o paraíso,
São águas do mesmo rio
Bonaparte a conquistar,
Tornar arte o matar,
Fenecer no desvario.
Adormecido Ele se agita.
À dor, vencido, se entrega
Convencido de Seu erro,
Ou vencido, Ele não nega.
Só a cadência da eternidade,
Sem decadência, sem apogeu,
Dissipará o poder que cega
E se fará de Deus... um ateu


Os circunstantes entreolharam-se e aplaudiram. Pôde-se perceber um en­tusiasmo maior entre os funcionários da Proeza.
— E então, especialistas, o que acharam?
— É uma coisa bonita — disse Orfeu Dioniso.
— Lá vem o “mas” — apostou Abel.
— Sem “mas”. É um bom poema. Disse “poema”. Seu hermetismo, no entanto, dificulta sua transformação em letra de música.
— Hermetismo? — questionou Abel. — O que há de hermético nele? Alguém aqui não o entendeu? Se há um Deus, ele deve ser uma criatura amargu­rada, orgulhosa das realizações de sua grande criação, mas também envergo­nhada pelas barbaridades humanas. “Por quê?”, Ele se pergunta. Talvez dis­sesse até “por que tanta injustiça, meu Deus?” Um absurdo, não é? Mas é nes­se momento que Ele questiona a si próprio, que duvida. Nem que seja por uma fração de segundo por essa eternidade toda, Deus terá sido ateu, se não o tornar-se definitivamente. O título da obra é A Luz. Enfim veio a luz e Ele viu a verdade.
— Não tenho vergonha de confessar que eu não tinha entendido o poema — admitiu Ênio Saito. — Agora ficou ainda mais belo para mim.
— Viu como é uma letra difícil, Abel? — afirmou Lício. — Sabe o que o grande público entenderá? Só vai entender o finalzinho, esse negócio de que Deus vai virar ateu. E isso vai revoltar muita gente.
— O homem detesta aqueles que derrubam suas ilusões — disse Abel.
Saito anotou.
— Você tem talento — asseverou Dioniso. — Por que, para começar sua carreira de compositor, você não experimenta criar algo mais simples, mais palatável? Depois dos primeiros sucessos, que venha A Luz.
— Algo mais musicável também — arriscou Paula Chagas.
— Vou pensar, vou pensar — disse Abel, ligeiramente contrariado.

domingo, setembro 02, 2007

MANCHETES QUE NUNCA SERÃO PUBLICADAS



Máquina prova honestidade dos políticos

Lula inverte o jogo: agora são R$ 8 bilhões para os bancos e R$ 80 bilhões para os pobres

Humanidade abandona o álcool: mortes violentas caem 90% e saúde faz economia de 60% em seus gastos

Jogadores brasileiros deixam de ir para o exterior por dinheiro

Astros da Seleção abrem mão de premiação na Copa

Globo exibe documentários no lugar de novelas

92% dos brasileiros lêem mais de 10 livros por ano

Rubinho Barrichello é campeão mundial de F-1


sexta-feira, agosto 31, 2007

UM URUBU POUSOU NA MINHA PAISAGEM


A imagem acima representa uma pequena fração da paisagem que se revela aos meus olhos todos os dias, seja por meio da janela do meu quarto, seja através das janelonas do andar superior, de onde esta foto foi tirada.

Mas num destes derradeiros dias de agosto, além da fumaça, da névoa e da secura do ar, um novo personagem resolveu tirar do armário seus dotes de modelo para compor esse vivo e mutante quadro que a natureza e a engenhosidade humana pintaram para que os jataienses possam apreciar todo dia.

Um mui digno urubu ficou horas no topo do poste da esquina que fica em frente de casa. A maior parte do tempo imóvel, qual a estátua do Cristo, que, lá do seu canto superior esquerdo, parecia, com seus braços abertos, esbravejar contra o intruso, como se estivesse gritando que aquela paisagem já tinha seu protagonista. Tudo em vão, pois o urubu não quis saber de abandonar o primeiro plano.

Altivo e glorioso, como o Flamengo, o clube que foi apelidado com seu nome, o bom e velho urubu continuou em sua performance de estátua viva e, num rasgo de magnânima generosidade, permitiu que dois prosaicos anus-pretos abiscoitassem uma migalha de sua cena. Lá estão eles, no canto inferior direito da foto.

Ser evoluído que é, o urubu também não guarda mágoa e rancor. Tanto que não impôs obstáculos à presença de um membro da raça humana, que tanto preconceito e inverdades vem despejando sobre a classe ao longo dos milênios. Os primos abutres, colegas no ofício de manter este planeta limpo e habitável, também sofrem com tal discriminação. Veja lá: entre o poste e os anus um homo sapiens finge que conserta um telhado. Mas todos sabemos que o que ele queria mesmo era tirar uma casquinha de Sua Excelência Urubulina.

O título desta postagem remete a um verso do grande poeta Augusto dos Anjos, que, apesar de todo o seu talento, não deixou de tacar uma pedrinha de preconceito no coitado do urubu. Confira a íntegra do poema Budismo moderno:

Tome, dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo meu coração, depois da morte?!
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!
Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;
Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

Mas Augusto dos Anjos é mais conhecido por outro poema, Versos íntimos:

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Muita gente deve estar neste momento pensando: "Por que ele mudou de assunto e começou a falar de poesia? Será que ele quer fugir da questão principal?" Calma, gente, não estou fugindo da questão principal. E respondo-a enfaticamente: não, o urubu não estava ali por minha causa. Eu já havia tomado banho. Já o consertador de telhado, não sei...

quinta-feira, agosto 23, 2007

UM CONTO NÃO-DIALÉTICO



Homo Platonicus

Arminius jamais revelou seus sentimentos por Rroxxannyy. A ninguém. Muito menos a ela própria. Arminius era místico e julgava que seu amor por Rroxxannyy vinha de existências anteriores. Nem que, nos primórdios do sistema solar, ele tenha sido uma rocha que escapuliu de um cinturão de asteróides e ela, um cometa. Mesmo assim, já naquela época, ele a amava.

Rroxxannyy desde sempre suspirou por Arminius. Receosa de tomar a iniciativa e acabar sendo condecorada por termos nada abonadores, ela nutria a esperança de que Arminius meramente notasse sua existência. Mas tudo que seus sentidos diziam é que ele só era feliz e falante com seus amigos. Diante dela, seus olhos desviavam-se e de sua boca não saía nem um balbucio.

O que Arminius e Rroxxannyy não sabiam era que Benoá, recém-chegado à cidade, também tinha pretensões afetivas quanto à garota. Muito tímido e de rígida formação religiosa, a Benoá não só faltava coragem para abordar Rroxxanny como também sobrava medo da desaprovação familiar, uma vez que o objeto de seu desejo não era da mesma religião.

Além de Rroxxanny, outra paixão em comum possuíam Arminius e Benoá. Foi num encontro de numismática que eles transpuseram a barreira do bom-dia/boa-tarde. Alguns meses de amizade depois, Benoá, ainda que claudicantemente, abriu-se com Arminius a respeito de sua outra paixão. O amigo limitou-se a ouvir, embora seu coração tenha disparado como nunca antes acontecera em sua vida e sua cabeça tenha entrado em ebulição.

Desde a revelação de Benoá, a vida de Arminius tornou-se insuportável. Não poderia continuar vivendo com a possibilidade de que outra pessoa tivesse por sua amada os mesmos sentimentos que ele. Pior ainda: e se Benoá tomasse coragem de se declarar a ela? E que desastre seria se ela correspondesse!

Certa manhã as aulas terminaram mais cedo. Chegara a notícia de que Benoá fora encontrado morto em seu quarto. Levantara-se a hipótese de suicídio por envenenamento, mas nenhum bilhete, nenhuma evidência fora deixada. Como soube fingir tristeza muito bem, Arminius recebeu o consolo de vários colegas, afinal, era o melhor, talvez o único, amigo do falecido.

Até Rroxxanny veio lhe dar os pêsames. Aquele sorriso o convenceu de que havia valido a pena. Sim! Agora ela voltara a ser sua exclusividade. Ele poderia voltar a sonhar com ela sozinho.

terça-feira, agosto 14, 2007

PRATÃO, PIPÓCRATES E O VEGETARIANISMO

- Então tá confirmado, hein, Pratão? Tu vai lá em casa sábado, né?
- Claro, claro. Como é que eu ia perder a festa de formatura do seu filho no primário?
- Valeu, amigão. É um momento muito feliz pra família, afinal, tão jovem e ele já está prestes a ir pra quinta série...
- Pois é, parece que foi ontem que ele nasceu...
- No entanto, já se vão 23 anos...
- Mas você cuidou daquele detalhe?...
- Que det... Ah, sim! Não se preocupe: vai ser um churrasco pras pessoas normais, mas pra ti eu já mandei trazer as melhores reservas de repolho do Velho Continente.
- Lá vem você de novo brincar com o meu vegetarianismo... É motivo de chacota o fato de eu ser uma pessoa evoluída?
- E desnutrida.
- Saiba que não é preciso devorar outros seres vivos para obter os nutrientes necessários para se ter uma vida saudável!
- Tudo bem, tudo bem. Não quero discutir a mesma coisa outra vez. Longe de mim...
- “Mas”...
- Eu não ia dizer “mas” nenhum.
- Ah, eu te conheço, Pipócrates...
- Eu ia dizer “porém”.
- Vai tom...
- Calminha, meu chapa, calminha... Eu só ia dizer, de forma racional e civilizada, que você... NÃO PASSA DE UM HIPÓCRITA!
- Que isso? Pra que gritar, pô?
- Deu vontade.
- O que tem a ver o meu vegetarianismo com hipocrisia?
- Bem, para responder a sua questão, começo fazendo minhas perguntas: primeiro, por que você não come carne?
- Ora, você sabe muito bem. Acho que o ser humano, enquanto ser pensante, racional, consciente, não tem o direito de acabar com a vida de outros seres para nutrir-se ou apenas para lhe agradar o paladar. É simplesmente... simplesmente... imoral.
- Certo. Então o senhor concorda que pratica o vegetarianismo para poupar animais outros do sofrimento?
- Sim... Em parte, está correto.
- Não só do sofrimento, mas também da morte violenta, provocada?
- Exatamente.
- Mas o senhor ingere álcool, não?
- Sim, eu bebo, você bebe... E daí?
- A medicina já comprovou por inúmeras vezes que as bebidas alcoólicas são a causa de diversos males: detona o fígado - neguinho pode morrer de cirrose, câncer, essas merdas todas -, gastrite, polineurite, anemia, pelagra, úlceras cutâneas, deficiência de vitaminas B-sei-lá-o-quê, cérebro, respiração, coração e o diabo a quatro. Além dos problemas de violência doméstica, brigas de bar, acidentes de trânsito e...
- Ei, peraí! Peraí! Onde tu tá querendo chegar?
- Quero chegar à minha pergunta final: se você é vegetariano por não concordar com a matança de outros animais, por que você toma álcool, mesmo sabendo que a bebida mata, seu animal?
- Ah, vai te f...
- Você é um animal, um ser vivo que nem o boi, o porco e o frango. Matar ou infligir sofrimento a si próprio vale, mas a outros animais, não. Se isso não for hipocrisia, então o que é?
- Eu deixaria de ser vegetariano se o Aristóteles Omorris fosse servido numa bandeja.
- Nossa, que mau gosto... Bleargh!
- Pensando bem, nem os índios caetés – aqueles que deglutiram o bispo Sardinha – teriam estômago pra comer o Totó.
- Nem os urubus...

Filósofos de rua em tempo integral, Pratão e Pipócrates discordam em tudo, mas um sentimento os une: o ódio a Aristóteles Omorris

domingo, agosto 12, 2007

MIUDEZAS

• Com ele não tinha esse negócio de foro íntimo. Era juiz de direito.

• O MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE INFORMA:
Temos uma boa e uma má notícia. A boa é que o desmatamento diminuiu. A má é que já não há mais matéria suficiente para que os índices continuem caindo.

• O PESSIMISTA: Penso, logo desisto.
O OTIMISTA: Não penso, logo insisto.
O REALISTA: Penso. Repenso. Então ajo. Bem... ou não.

• "Claro que tenho minhas convicções, mas também tenho fome" - disse ele ao se vender.

quinta-feira, agosto 02, 2007

CONTO DIALÉTICO-METAFÓRICO-ALEGÓRICO-SIDERAL


Imperatividade

- Em nome do povo umabaraúna, habitante deste humilde mundo, eu, Kaligino dos Helpécidos, saúdo nossos visitantes.
- Eu sou o general Rahms Pheld, representante da Oops, Organização Onisciente dos Planetas do Sistema. Minha missão é de exploração, sempre em busca de novos aliados para nossa união de mundos, que já conta com 210 civilizações. Asseguro-lhes que nossos povos são eminentemente pacíficos.
- Tudo bem, mas pra que servem aqueles instrumentos nas mãos de seus acompanhantes? E aqueles imensos cilindros que ornam sua nave?
- São armas. Mas só para defesa.
- Mas, se vocês são pacíficos, por que precisam de armas?
- Porque há povos que, por ignorância ou outro motivo qualquer, rejeitam nossa presença ou até mesmo nossa mera existência. Existem povos que repelem qualquer tipo de contato com outros mundos, muitas vezes usando violência para atingir seu objetivo.
- Por que simplesmente não respeitar a vontade desses outros povos?
- Bem... Hã... Às vezes a defesa passa a ser uma questão de sobrevivência. Por exemplo: nossos sensores detectaram a presença de grandes animais em seu mundo. Quando vocês são surpreendidos por um deles, vocês não usam armas para defender suas vidas?
- Claro que não, amigo!
- Vocês não reagem?
- Obviamente temos um instinto de sobrevivência, de preservação da espécie. Mas nunca a custo do extermínio de outra. Podemos tentar fugir, nos esconder, mas ferir ou matar, jamais!
- E quando não há como fugir ou esconder-se?
- É a vida... Chegada a nossa hora, não há o que fazer.
- Vocês não matam nem para comer?
- Que tipo de absurdo é esse? Matar para comer? Isso é... isso é simplesmente deprimente, descabido, horroroso... Eu nunca... Então seu povo mata outros seres vivos para comê-los?
- Sim. São fontes de proteína...
- E você disse que usava essas... essas armas somente para defesa...
- Só comemos seres irracionais.
- O irracional tem menos direito à vida que o racional? Por quê?
- Deixemos de lado essas questões filosóficas, por enquanto. Gostaríamos de iniciar um entendimento diplomático.
- Como?
- Será que o tradutor universal não está funcionando direito, tenente?
- Tudo em ordem, senhor. Todas as unidades estão funcionando perfeitamente.
- Ótimo. Caro Kagilino...
- Kaligino.
- Sim. Caro Kaligino, nosso governo ficaria muito honrado se seu planeta passasse a fazer parte da Oops.
- Ficamos lisonjeados por pensarem assim.
- Para que isso aconteça, traremos nosso pessoal para dar início aos trâmites de praxe. Isto, claro, se vocês concordarem.
- Certamente. E o que ganharíamos com nossa adesão a sua organização?
- Vocês teriam acesso a todo o nosso conhecimento científico, cultural e tecnológico. Poderiam desfrutar de todo o conforto, comodidade e prazeres dos quais dispõem qualquer cidadão de qualquer um dos planetas que fazem parte da Oops. Nós criamos coisas com as quais vocês jamais sonharam.
- Talvez porque nunca tenhamos precisado delas.
- Ora, vocês não têm naves, não têm veículos de espécie alguma, andam nus... Vocês... Vocês me dão nojo!
- Há milênios somos felizes vivendo desse jeito. Por que mudar? A troco de quê?
- A troco de nossa amizade! Vou deixar uma infinidade de dados sobre as mais avançadas civilizações que compõem nossa organização. No próximo mês eu volto para ter uma resposta de vocês. Que vocês se reúnam, que façam congressos, assembléias, votações, o que for. Daqui a um mês vocês me dão uma resposta, combinado?
- Como desejar, general. Vocês sempre serão bem-vindos ao nosso mundo.
- Olha só aquela velha horrível! Deveria ser coberta à força!
- Horrível? Não entendi esse conceito.
- Digamos que ela seja totalmente desprovida de beleza.
- Mas ela é um ser tão maravilhoso.
- Falo de beleza física, meu caro.
- Quer dizer que, coberta, ela ficaria mais agradável aos seus olhos?
- Não é bem assim. É indecente!
- Mas ela sempre praticou o bem assim, descoberta. Há algo mais decente que isso?
- Está bem, está bem. Não estou aqui para julgar seu povo!
- Ao matar outros seres vivos, vocês usam roupas ou não?
- Até o próximo mês... amigo.

***

- Olá outra vez, Kaligino dos Helpécidos.
- Seja novamente bem-vindo, general Rahms Pheld. Vejo que desta vez você trouxe um número muitíssimo maior de acompanhantes e de naves. E quão imensas elas são! Parabéns ao seu povo por tais maravilhas tecnológicas.
- Em nome do governo da Organização Onisciente dos Planetas do Sistema solicito que me informe a resposta de seu mundo ao nosso convite de ingresso na Oops.
- Bem, general, como eu já previa, todos os umabaraúnas consultados resolveram não aceitar sua oferta de repasse dos chamados “avanços científicos”, embora todos tenham adorado estudar sua cultura por meio das informações que você nos forneceu.
- Quer dizer que não vão aceitar nossa amizade?
- Pelo contrário. Aceitamos sua amizade sem pedir nada em troca. Vocês serão sempre bem-vindos ao nosso mundo para nos fazer visitas à hora que quiserem. Apenas decidimos não mudar nosso modo de vida, o que aconteceria se aceitássemos sua tecnologia e sua estada de forma permanente.
- Então é assim? Pois bem, “amigos”. Tenente, providencie o desembarque de todas as nossas tropas. Depois traga os técnicos e os burocratas.
- Então já podemos começar a invasão, senhor?
- Quem falou em invasão, tenente? Vamos fazer mais uma ocupação, entendeu?
- Sim, senhor.
- Espero que em menos de um mês comecemos a enviar os primeiros carregamentos de minérios e de carne.
- Vocês não podem ferir nosso mundo!- Sai da frente e cala essa boca, velho imundo! Coloquem uma roupa nele! Vou mostrar a essa gente o verdadeiro significado da amizade!

terça-feira, julho 31, 2007

ARISTÓTELES ANOTADO

Prefácio do editor

A última coluna a nós enviada pelo insigne Aristóteles Omorris foi interceptada pelos nossos colaboradores Pratão e Pipócrates. Por engano, o e-mail de Omorris foi parar na caixa de entrada da dupla. Deve ter sido por causa dos problemas etílicos de Lorde Byron, o macaco de estimação de Aristóteles. Por não entender nada de computador, o colunista delega a Lorde Byron suas tarefas cibernéticas.

Bem, Pratão e Pipócrates, agindo dentro da ética e da razão, enviaram pra gente a coluna extraviada. Claro que eles não resistiram a ler antes de todo mundo o que o velho - e bota velho nisso - colunista escreveu. E, extremamente críticos como são, também é óbvio que não resistiram e fizeram diversas observações sobre o texto.

Como as anotações da dupla ajudam sobremaneira a elucidar a mente de Aristóteles Omorris e funcionam como um belíssimo complemento ao texto principal, este blog considerou que seria interessante e oportuno publicar a coluna com as anotações (em vermelho) feitas por Pratão e Pipócrates. Afinal, em nosso contrato com Omorris não há nenhuma cláusula que impeça que o publiquemos desta maneira.


Genésio e a gênese

Aristóteles Omorris

Aqui, agora - Completamente extenuado (coitadinha dela...) devido à confecção de minha coluna no mês retrasado (na verdade faz mais de dois meses que esse babaca não escreve porra nenhuma!), resolvi passar uns dias repousantes e revigorantes nas ilhas Kerumacho (?!), que, em idioma nativo, significa Terra do Sol Poente (no caso do Totó, o poente deve ter sido um negão, rirrirri!).

Ainda não estava refeito do esforço recentemente despendido quando fui solicitado pelo ser assombrosamente repugnante (pô, não fala assim do nosso chefinho! Aliás, há quantos dez minutos não temos um aumento?) que se diz o titular-dono-editor-proprietário-chefão-manda-chuva deste naco de ciberespaço a escrever um novo texto (o macaco continua aprendendo palavras novas pra ele). Apesar de me sentir altamente ofendido por ter sido instado a cumprir meu contrato (que nem “estrela” do futebol brasileiro), atendi aos apelos do canalha exclusivamente em respeito aos meus seletos leitores (isso: selecionados nas melhores instituições psiquiátricas).

Certo dia, estava eu a dar palpites na criação do mundo (aviso a todos que o sujeitinho escreve e fala essas coisas sem ficar vermelho), quando de súbito veio a vontade de parar de viver virtualmente agarrado ao divino saco. Então juntei o resto da turma do fundão, que tinha o Lúcifer e os espíritos dos futuros Hitler, Mussolini, Stálin e Collor, e decidimos quebrar aquela tradição careta e conservadora (porra! Agora o mal é de esquerda?). Também, o Cara não aproveitava nenhuma das minhas idéias e nem as dos meus camaradinhas (se dependesse das suas idéias, Totó, o mundo seria um eterno programa do Chaves – aquele do Chapolim). Falei: "Vossa Auto-suficiência, negócio é o seguinte: acho que tá na hora da gente seguir nosso caminho". Ele sorriu daquele jeito paternal dele e não falou nada. Quem cala consente. A gente se mandou (Foi então que o Supremo Chapa parou de sorrir. E começou a gargalhar. De alívio principalmente).

Sob minha liderança, nosso grupo decidiu vir à Terra, onde moldaríamos uma sociedade perfeita. Para começar, era preciso criar um clima aprazível (foi quando surgiram os furacões e os tornados, além das frentes frias que vêm da Argentina...). Depois era necessário povoar o mundo das mais belas criaturas (vieram os jacarés, os vermes, o cheiro do gambá e a família Omorris). Por fim, escolhemos os humanos para que fossem os mais inteligentes entre os seres vivos do planeta (ah, então está explicado: Totó e os caras que desceram com eles não são humanos. Como desde então permaneceram vivos na face da Terra...).

De acordo com a tradição, o populacho trocou Jesus por Genésio (tá na Bíblia, Totó?). Ou seja, a plebe tem o hábito de se voltar contra aqueles que existem somente para ajudar a evolução humana. Conosco não foi diferente. Todos nós fomos execrados e/ou rechaçados e/ou eliminados por uma gente que não estava preparada para o que tínhamos a oferecer (peraí! Vocês que se cansaram de puxar o Divino Saco tinham mais a oferecer? O que viria a seguir? O corte do fornecimento de oxigênio?).

Num momento de magnanimidade (caprichou, hein, Lorde Byron?), decidi não retaliar contra a sociedade humana (ufa!). Preferi recolher-me a uma profunda reflexão (talvez fosse melhor tomar um laxante, rirrirri) com o fito de absorver o baque e definir quais serão meus próximos passos na direção de um trabalho em prol da evolução da humanidade, ainda que esta me tenha sido extremamente ingrata (não fica assim, Totó. A gente reconhece seu esforço. Por isso torcemos por você. Torcemos para que você encontre logo seu merecido e eterno descanso).

Aristóteles Omorris foi Caim em uma encarnação passada

domingo, julho 22, 2007

TRECHO DO LIVRO "CESALPÍNIA"



- Dies irae, dies illa,
Solvet saeculum in favilla,
Teste David cum Sibylla

Aqueles foram dias de ira; tudo vira cinza, favila; como testemunham Davi e Sibila. Mas nosso mundo não se desfez em cinzas. Nossa honra é que se esfrangalhou. Mas hoje estamos acabando de recolher os pedaços. Sim, pois nos impuseram um sistema tipo cesalpínico, já em pleno funcionamento com vocês na época. Com a diferença que ao rés do chão e no alto da montanha ainda mantêm seus canos apontados para nós. Que interessa ao governo brasi­leiro a presença de seres tão fortes e determinados em sua sociedade em câmera lenta?
— A que sociedade interessa a presença de assassinos contumazes em seu seio?
— Lucano da Cesalpínia está novamente a justificar as coercitivas ati­tudes brasílicas? “Os espíritos medíocres comumente condenam o que está além de seu alcance”. La Rochefoucauld. Pois bem, meu jovem, vocês têm conectores há mais tempo que nós. Todavia sempre portaram-se caninamente durante todo o tempo. Nós não. Tivemos conectores que perderam a vida em sua busca pela justiça. Sabe qual é minha vontade, Luc? É matar um a um todos os brasilei­ros. Eliminá-los da face da Terra. Sem culpa, sem remorsos. Justiça históri­ca.
No século passado, Pedro II e Floriano mandaram fuzilar conectores nos­sos. Quantos dos seus passaram por uma situação assim? Ouvi dizer que tive­ram uma mulher na função — gargalhada profunda. — Uma mulher! A fraqueza personificada. “Fragilidade, teu nome”... você sabe qual é. Não tinha como dar certo. Elas são portadoras de uma histeria histórica. Ou escreveram ao longo das eras uma história histérica.
— Nossa conectora foi caluniada pelo preconceito. Do tipo que você agora destila.
— Terrível, não? O Brasil a caluniou. E você ainda justifica os atos deste país.
— Sei distinguir o certo do errado. Condeno apenas o que o Brasil faz de errado.
— Dizem que a expectativa de vida na Cesalpínia é maior que a média européia, maior que a japonesa. Vocês comprovaram a tese segundo a qual os covardes vivem mais.
— Ora, seu... — Lucano levantou-se, esquecendo a dor dilacerante, e correu na direção do mascarado. Agarrou seu pescoço mas foi repelido com um chute justamente no estômago. Foi ao chão, onde ficou a contorcer-se.
— Então havia um instinto assassino escondido aí o tempo todo, não. Contorça-se, verme! — disse o mascarado, enquanto chutava as costas de Lu­cano. — Então todo o treinamento dos discípulos de Pavlov não o mataram para a vida. Fico feliz por você — chutou sua nuca.
Depois levantou-o e colocou-o novamente no sofá.
— Com dificuldade para respirar? Isso passa. Tome meu lenço. Limpe-se. Depois vou guardá-lo sujo de seu sangue. Para recordação — ficou calado por algum tempo. — Talvez esta tenha sido a ação mais hostil de sua vida, não? Se você se tortura por nada, fico a imaginar o que você vai sentir doravante depois de tentar me matar. Sim, pois ninguém aperta o pescoço de outro como você fez só para rebater um argumento. A menos que seja um hábito de sua terra. A uma tese contrária responde-se com uma tentativa de estrangulamen­to. Nada mal.
Mas se você me matasse, aí sim teria motivos para se torturar. Pois você se recrimina como um Macbeth seco. O que é um Macbeth seco? Um Macbeth sem sangue nas mãos, sem fantasmas a atormentá-lo.

Ter consciência
Do ato que pratiquei — melhor seria
Perder conhecimento de mim mesmo!

Mas o acúmulo de sangue em sua vida fê-lo ver a verdade. Com o tempo e com os acontecimentos, culminando com a morte de sua mulher, Macbeth perce­beu a insignificância da vida, pequena demais para que nos importemos com ela. Então ele diz que

Todos esses nossos ontens
Têm alumiado aos tontos que nós somos
Nosso caminho para o pó da morte.
Breve candeia, apaga-te! Que a vida
É uma sombra ambulante: um pobre ator
Que gesticula em cena uma hora ou duas,
Depois não se ouve mais; um conto cheio
De bulha e fúria, dito por um louco,
Significando nada.

Macbeth no início era um Lucano. Ou um quase Lucano. No máximo um homem que se preocupava. No final era um típico terrogumense. Um terrogumense nii­lista. Mesmo quando tudo estava perdido, com seu castelo infestado de inimi­gos, ele não fraquejou.

Por que haveria eu de, arremedando
O insensato romano, traspassar-me
Com a minha própria espada? Enquanto vejo
Inimigos com vida, melhor ficam
Neles que em mim as cutiladas.

Um bela filosofia, não, Lucano da Cesalpínia?
— Na teoria assim seriam vocês. Só na teoria.
— Como só na teoria?
— Desde que chegaram ao Brasil você têm agido apenas como covardes, atacando viajantes, cidades desarmadas, raptando mulheres e fugindo.
— Fugindo?
— A história do ardil contra Caxias foi um meio desesperado para fugir ao cerco do exército. O desfiladeiro foi a escolha adequada para que pudes­sem sentir-se em segurança. Não engulo sua tentativa de ataque pelos flan­cos: para mim vocês estavam tentando fugir por outros lados.
— Como ousa? — bradou o mascarado, desferindo um potente tapa no ros­to de Lucano.
— Covardes foram e covardes continuam até hoje, ao assassinar inocen­tes indiscriminadamente.
Com a direita e com a esquerda, o terrorista estapeou Lucano por cerca de quinze segundos.
— Covardes são vocês! Covardes são os cesalpinos! Você é o covarde aqui!
O mascarado largou o enfraquecido Lucano, aparentemente recobrando o equilíbrio.
— Você está um bagaço, Lucano da Cesalpínia — disse, cinicamente. — Está mesmo doente. Talvez você morra a qualquer momento de hemorragia inter­na. Úlcera não é brincadeira — e riu. — Ei, não cuspa sangue no sofá: o terrorismo não é uma atividade muito rentável. Se estivesse em condições o que você faria comigo? Diga-me, Luc.
Ante o silêncio do arfante interlocutor, que se recusava a gemer ou gritar, o mascarado prosseguiu:
— Você está com uma vontade irreprimível de matar-me, não? Mas... e seu adestramento, de nada valeu? Você mataria, Lucano? Diga-me! Mataria? — gritou.
— Não — balbuciou Lucano, com a língua mergulhada em sangue. — Nor­malmente não mataria. Mas... mas matar você seria um grande bem que faria ao... mundo.
— Então todo o condicionamento, toda a energia desperdiçada pelos go­vernos brasileiro e cesalpino em seu treinamento, em sua transformação em autômato, tudo isso foi em vão?
— Nunca fui autômato. Se fosse, não teria procurado Nei. Teria... te­ria continuado quieto. Não estaria passando por esta... esta absurda... si­tuação.
— Quer dizer que há um oásis de emoção em seu vasto deserto de bom senso?
— Bom senso não prescinde de emoção.
— Que me dizes de Alcmene? Gostas dela?
— É uma amiga.
— Quão amiga ela é? Você gostaria que ela fosse mais que uma amiga?
— Deixe-me... deixe-me morrer em paz.
— Que eu saiba as escolas para conectores não recorrem a tratamentos mais radicais contra os impulsos humanos. No seu caso nem precisariam das mais tênues instruções a respeito da inconveniência de relacionamentos mais íntimos entre conectores e nativos brasileiros. Pois, se você violou as re­gras ao compartilhar um segredo de estado com o gordinho, por que não violá-las em outras áreas? O que o deteve?
— Não poderia... não poderia ter nada mais sério se minha vida... mi­nha vida é vasculhada dia e noite... se cada passo é vigiado... se não sei o que será do... do meu futuro...
— Se todos esses empecilhos não existissem, qual seria sua atitude em relação a Alcmene? Ou melhor, em relação a qualquer mulher.
— Não sei o que faria... Nem cogito sobre improbabilidades... Ou pro­babilidades... Não sei... e mesmo se soubesse não diria a você.
— As entrelinhas já disseram tudo — gargalhou o mascarado. — Então, definitivamente, você não é um homem completamente dominado pela razão. Con­fessou que poderia matar-me; não sabe o que faria em relação a uma mulher de quem gosta se não fossem determinadas circunstâncias, enquanto o bom conec­tor diria: “Tenho uma missão a cumprir, uma missão colocada acima de meus desejos pessoais”; e tentou aproximar-se dos conspiradores liderados por Pietro. Você não está totalmente perdido. É digno de ser chamado de homem. Com uns vinte anos de convivência, poderia passar-se por um terrogumense. Posso levá-lo a um hospital, Lucano. Basta que aceite juntar-se a nós.
— Prefiro mil mortes... mil mortes mais dolorosas... do que esta.
— E se eu disser que inventei toda essa história de Terrogum? Que não somos os Amici Libertatis? Que eu sou Pietro disfarçado? Que estava fazendo um teste com você?
— Eu... eu já não duvido... nem confio... nem desconfio de nada... De nada. Eu vim para me juntar a Pietro e aos outros. Mas... mas você me espan­cou. Pietro me espancaria?... Já não sei... Peço então que... retire a más­cara.
— Não. Você já disse tudo que eu queria ouvir. Não preciso mais de você. E como já disse: Pietro não existe mais.
Coberto do sangue que lhe saía da boca, com as roupas ensopadas, o ab­dômen como que aberto por um bando de aves de rapina, uma crescente dor de cabeça, as costas e o pescoço sentindo os efeitos da agressões que sofrera, a vista turva, a respiração entrecortada e difícil, Lucano ainda fez com que o mascarado ouvisse:
— Será que... não tenho direito... pelo menos o direito... à verdade?
E desmaiou. E desta vez não teria o consolo de passar um tempo no país dos sonhos. Ou de Sonho.