domingo, março 28, 2021

Medieval Tour - Um conto distópico para ressuscitar o blog

Quem poderia me recriminar? Se você, depois de anos de cativeiro, de sofrimento, de miséria, notasse uma brecha na segurança, não aproveitaria a chance para escapar? Era agora ou nunca. Sei lá, eu vi nos olhos daquela mulher estrangeira a oportunidade perfeita para jogar minha cartada. Ah, o clichê... Segundo os reprodutores de estereótipos, as mulheres são mais compassivas, empáticas, essas coisas. E ela transmitia sinceridade, compaixão e piedade, artigos facilmente reconhecíveis por serem raros nesta terra há muitos e muitos anos. No meu lugar você também se arriscaria, tenho certeza.


Se você não tivesse liberdade de pensamento, se você não tivesse direitos básicos de qualquer civilização, se você não tivesse acesso à informação sem filtro do governo, se sua vida não valesse nada, se a opressão fosse uma constante em seu dia a dia, você não tentaria qualquer coisa para escapar disso? É como cair na água, na correnteza e não tentar se agarrar a qualquer coisa para não se afogar. Um troço instintivo, enfim.


Quando eu soube que havia três alemãs no hotel, vi que tinha chegado a hora. O plano estava na cabeça há meses. Eu só pensava nisso o dia inteiro, todo dia. Era até um jeito de tirar a raiva e o ódio da cabeça. Faltava encontrar um grupo só de mulheres. O chato é que a maioria, esmagadora maioria, dos turistas é homem. Com a ajuda de um amigo de infância, consegui entrar no quarto delas. Fiquei ali esperando pacientemente. Cheguei no meio da tarde e, quando já escurecia, elas voltaram de mais um passeio turístico. Era dia da bênção no parlamento. Ontem elas acompanharam o rito de expulsão do vereador que esqueceu um trecho da Bíblia. Nunca mais vai voltar pra política. Dizem que o estado é laico na Europa. Dizem que era assim aqui também durante um tempo. Inacreditável. Mas minha avó e outros antigos confirmaram. À boca pequena, obviamente. Hoje os líderes religiosos mandam tanto quanto o governo, quer dizer, não dá pra separar quem é líder religioso de quem é governo. É tudo a mesma coisa. A religião governa, desde que não seja candomblé, umbanda ou tenha outra matriz africana ou indígena. Estes nem realizar seus cultos podem. Minha avó disse que isso estava pra acontecer desde a época do estado “laico”, pois não combatemos as menções ao sobrenatural em constituições, regimentos internos e cerimônias organizadas por órgãos públicos, não fomos enérgicos o suficiente para combater os ataques aos cultos africanos.


As gringas chegaram. Ao me avistarem, houve gritos, houve ameaças de agressão com objetos do quarto. Eu tentava acalmá-las com meu porco inglês, aprendido com os livros e as revistas que minha avó contrabandeava para mim – e nas conversas com ela, claro. Eu falava e caprichava ao máximo em ostentar uma cara de coitado na esperança de que elas se recobrassem a razão.


Duas delas se preparavam para me encher de porrada quando a mais alta pediu que elas parassem. Elas obedeceram imediatamente, como se lhe fossem subordinadas ou apenas tivessem um grande respeito por ela, que não parecia ser mais velha que a dupla nervosinha. Aparentemente são da mesma faixa etária e não levavam jeito de irmãs.


– Vamos ouvir o que jovem cavalheiro tem a dizer, meninas – disse ela, em inglês. Em alemão ela falou algo a mais, algo que arrancou uma risadinha das outras duas.

– Vocês precisam me tirar daqui! – apelei. – Já pensei em tudo. Eu posso me esconder na bagagem. Não sou grande. Eu preciso sair deste inferno!

– Pobre rapaz... – Ela, a chefona, a mandachuva, afetou sinceridade em sua voz, em sua expressão, sei lá. Só sei que confiei (ou era pura vontade de acreditar?).


Então, animado, contei minha história.


– Eu não aguento mais viver na barbárie. Para as pessoas que vocês viram por aí, que representam a maioria da população, esta vida aqui que levamos é o normal, é a regra. Elas não têm acesso à verdade.

– E você tem? Como?

– Em primeiro lugar, eu leio. Quer dizer, leio de verdade. Leio como antes se fazia por aqui.

– Antes do quê?

– Antes do segundo mandato. Até então era livre a circulação de ideias. As pessoas liam, viam e ouviam o que elas desejassem. Na escola havia alguma diversidade. A internet era um universo à disposição de todos, tanto que ninguém precisava de um pessoal que pirateia o sinal na surdina, entenderam? Não havia sites e aplicativos censurados. Quem quisesse podia saber tudo o que acontecia em qualquer parte do mundo. Hoje os mais jovens não sabem quem foi Darwin. Na escola ensinam que Deus criou o mundo em seis dias, que tudo começou no paraíso, que a arca de Noé salvou as espécies, essas coisas.


As mulheres gargalharam. Quando pararam de rir, continuei, sério e constrangido.


– Então veio o segundo mandato. Quer dizer, antes houve o golpe da eleição. Alegando fraude nas urnas eletrônicas (cujas provas ele nunca apresentou), o Comandante não aceitou a derrota. Ele foi à justiça para anular a eleição. Como a decisão foi negativa, insuflou seus seguidores a atacar o Supremo Tribunal Federal. Com a complacência das forças policiais, os vândalos quebraram o prédio e só não mataram os juízes porque a segurança conseguiu evacuar os que se encontravam no local. Mas alguns funcionários morreram. A turba aproveitou o ensejo pra invadir o Congresso e espancar deputados e funcionários de partidos de esquerda. Nos dias seguintes, a mídia e a oposição pediram o impeachment do Comandante. Houve uma enxurrada de notas de repúdio. Diziam que agora ele tinha ido longe demais. Nada diferente das reações dos quatro anos anteriores. Quando os protestos de rua começaram, a polícia e o Exército atacaram os manifestantes. Muita gente morreu ou ficou ferida. Isso aumentou a revolta e os protestos dobravam de tamanho a cada dia. Foi o que bastou pro Comandante decretar estado de sítio e virar o ditador que ele sempre sonhou ser. Usou os militares, que ele adulou com vantagens salariais e previdenciárias, cargos e mais cargos, para reprimir o povo, para “acabar com a balbúrdia e a baderna”, com a “revolta dos comunistas”, para dar respaldo aos delírios autoritários. Fechou temporariamente o Supremo e o Congresso. Quando voltaram, foi com gente escolhida por ele. Os partidos de esquerda foram criminalizados e banidos, seus líderes, presos, seus simpatizantes, calados. Sobraram os partidos de direita e, dentro deles, os membros que dissessem “sim” ou “sim, senhor”.

– Pelo menos acabou a polarização política no seu país – riu a chefona. – Ai, que sonho...

– Aí, finalmente, depois de quatro anos brigando com judiciário, parte da mídia, parte da classe artística e com quase toda a intelectualidade, ele pôde impor a agenda original, dele e dos seus apoiadores, especialmente líderes religiosos e cultuadores de armas e violência, milicianos ou não.

– Graças a Deus! Se não fosse isso, como nós poderíamos ter um vislumbre de idade média em pleno século XXI? Vocês ganham muito dinheiro com o turismo temporal, garoto. Chega daqueles safáris cafonas na África! Meu pai matava leões e elefantes todo ano. Até acabarem leões e elefantes. Eu já cansei de matar girafa. Descarga emocional zero. É como matar mosquito. Graças a Deus vocês existem! Vir ao seu país é como voltar ao passado, entrar em outro universo, numa bolha imune ao progresso. Wunderbach...

– Ganhamos muito dinheiro com esta bolha? Quem ganha dinheiro neste país? A casta governante, os militares, os milicianos e os bilionários que passam a maior parte do tempo no mundo civilizado, enquanto deixam a gente aqui no inferno que eles ajudaram a criar ao apoiar o grande merda.

– Shhhh... Cuidado, meu jovem. As paredes têm ouvidos. Pelo menos é o que me falaram.

– Olha, já nem me importo se vivo ou morro. Será a morte pior do que viver sem perspectiva nenhuma de melhora, condenado a ser um bosta a vida toda, sem poder estudar mais do que o necessário pra aprender a escrever o próprio nome ou anotar bilhetes? Vocês não sabem o que é ganhar o suficiente pra não morrer de fome, se tiver sorte. Vocês não sabem o que é perder uma irmã de dez anos que não pôde abortar porque o governo e as igrejas não deixam. Dez anos! E teve que morrer junto com o bebê antes do parto. O pai era um dos milicianos do bairro, que estuprava as garotinhas da região. Minha avó disse que antes do segundo mandato a gente tinha uma lei do século XX que garantia o aborto em caso de risco pra mãe, estupro, anencefalia e sei lá mais o quê. Hoje, nem isso pode. As meninas, as mulheres estão condenadas desde que nascem, sem direitos, sem educação sexual, sem assistência, sem nada. Como ter educação, se o dinheiro e os benefícios iam todos para os militares enquanto os professores iam abandonando a carreira por falta de salário e de condições de trabalho? O Deus de vocês também se diverte com o sofrimento das mulheres?

– Pobre garoto – a branquela parecia realmente comovida. Talvez inconscientemente tenha tocado naquele assunto para estabelecer mais empatia com elas, sei lá. – Você sabe fazer as pessoas se sentirem culpadas, sabia? Nós vamos te ajudar.


Inconscientemente ou não, parece que funcionou. Elas ainda tinham direito a mais três dias no país, de acordo com o pacote que compraram, mas me instruíram a ficar escondido no apartamento. Se algum funcionário aparecesse, eu me enfiava no armário.


O folheto do pacote turístico estava em cima da mesa. “Medieval Tour”. “Faça uma viagem ao passado”. “Cansado da civilização? Compre nosso pacote e volte feliz por viver em nosso país”. “Pacotes com um, dois ou três seguranças armados”. Era nisso que havíamos nos transformado: uma cápsula do tempo para os ricos entediados do mundo desenvolvido – e do não tão desenvolvido. Nossos remediados vizinhos também vinham matar a curiosidade.


Quando voltavam das “atrações turísticas”, elas queriam saber mais do meu maravilhoso país fora do roteiro preparado para os guias turísticos.


– Hoje nós observamos a chegada das crianças a uma escola. Tão lindo... As meninas de rosa, os meninos de azul... A escola caindo aos pedaços, mas todos rigorosamente em fila indiana e depois cantando o hino nacional como bons soldadinhos.

– Tudo que é público está caindo aos pedaços. O dogma do estado mínimo se tornou incontornável. No máximo se mantêm as forças de segurança, pra incentivar a mansidão do povo. Saúde e educação de qualidade, só pra quem tem dinheiro. Aposentadoria? Acabou, pois foram retirando direitos, retirando direitos, retirando direitos, até que todo trabalhador se tornou informal. Como ninguém pagava previdência, não havia dinheiro para aposentados. Cidades que viviam dos proventos dos mais velhos foram abandonadas. Miséria e violência só aumentaram. Sem empregos, sem salários, sem aposentadorias... sem isso você não tem comércio, que não compra da indústria, que fecha as portas e torna mais cruel o círculo vicioso. Não há saída para nós. Chegamos ao fundo do poço, mas agora é o próprio poço é que está indo pro fundo do poço maior em  que ele caiu. Ironicamente, a mídia, que apoiava a demolição da coisa pública, foi sendo fechada paulatinamente, bastava não se enquadrar 100% na cartilha do Comandante. Como sonhar com um futuro melhor se nossos estudantes são proibidos até de saber que existiram dinossauros no planeta?

– Que pitoresco. Mas uma coisa que me assusta é o número de pessoas armadas nas ruas. A adrenalina sobe, tudo fica mais emocionante, mas confesso que sinto um pouco de medo.

– A liberação das armas começou discretamente no primeiro mandato, mas foi escancarada no segundo. Coincidência ou não, as milícias, que começaram no estado do Comandante (inclusive ele e os filhos viviam homenageando milicianos no parlamento), passaram a se espalhar pelo país. Hoje, você, principalmente se for pobre, só consegue comprar gás da mão deles. Outros gêneros de primeira necessidade, TV a cabo, bebida, cigarro e até drogas ilegais, eles te arranjam também. E cobram taxa dos comerciantes por proteção. Mas a proteção não é contra ladrões não. É contra eles mesmos, pois, se você não paga a taxa semanal, eles podem te fazer algumas coisas desagradáveis.

– Fascinante! – Os olhos das gringas brilhavam.

– A liberação aumentou em dez vezes o número de homicídios por armas de fogo. Quando um repórter perguntou ao Comandante o que ele achou da briga de trânsito que terminou com o assassinato de um senhor de 73 anos, ele respondeu: “Quem nunca fez uma besteirinha de cabeça quente?”

– Charmoso – sorriu a alemã, sarcástica. – Outra coisa que me fascina é que nas prisões, nas favelas e nas ruas pedindo esmolas e apanhando da polícia e dos civis armados a gente só vê negros. É de se pensar que haja algum componente genético nisso...

– Tá doida, dona? Que ideia é essa? Antes do primeiro mandato este país viu como nunca negros e pardos em profissões de destaque, na universidade, na política, enfim, ocupando espaços que pareciam exclusivos dos brancos. Só que no segundo mandato o Comandante acabou com as quotas raciais, sociais e de gênero. Com o passar dos anos, os negros, os pardos, as mulheres foram saindo de cena, foram retornando a um papel subalterno na sociedade, como antes do Iluminismo.

– Nossa, ele sabe até do Iluminismo! Sua avó o ensinou muito bem.

– Na faculdade em que ela lecionou, depois que ela se aposentou, nenhuma outra mulher foi contratada. Aliás, temos cada vez menos universidades. Noventa por cento das públicas foram fechadas desde o último golpe; metade das privadas já era.

– Este país realmente faz jus à grana que gastamos. Outra coisa que percebi é que a gente não vê casais do mesmo sexo nas ruas.

– Antes do Comandante caminhávamos em direção ao respeito à liberdade individual, como você atingiram há tanto tempo. Mas a homossexualidade foi criminalizada no terceiro ano do segundo mandato. As igrejas foram autorizadas a proceder a chamada “cura gay”. Alguns anos depois o governo implantou os centros de recuperação comportamental. Meu primo foi levado à força para um desses campos, quer dizer, centros e nunca mais foi visto. Eles também proíbem visitas.


Na tarde do dia seguinte, depois de participar da Parada do Orgulho Hétero e passar pelo badalado pub Whites Only, elas apareceram com uma imensa mala, que, se não fosse multicolorida, iria se parecer mais com um caixão para seres mirrados e malnutridos como eu.


– Nós fizemos uns furinhos para você poder respirar. Vamos chamar os carregadores e você será colocado em uma caminhonete. Como tem caminhonetes pré-históricas nesta cidade... e usando combustíveis fósseis! Você não poderá se mexer de maneira nenhuma, o.k.?


Com sorte elas conseguiriam passar pela fiscalização do aeroporto e fazer com que me jogassem no bagageiro do avião. Certamente de frio não morreria, já que animais de estimação viajavam normalmente em bagageiros. Brancos dificilmente são revistados. Brancos de cabelos e olhos claros, jamais. Com mais sorte ainda, quando a mala se abrisse para mim, eu já estaria respirando ares civilizados. Faltavam umas catorze horas para a liberdade.


Mas a mala voltou a se abrir bem antes do que eu esperava. Talvez menos de uma hora depois do início de uma viagem cheia de solavancos por ruas esburacadas e desniveladas. O desmonte do setor público cobrava seu preço incessantemente.


– Sai daí, vagabundo! – berrou um brutamontes com uniforme da Polícia Militar, já me puxando pelo colarinho e pela manga da camiseta.


Enquanto apanhava dele e do parceiro, percebi que minhas “benfeitoras” usavam seus celulares para tirar fotos da cena ou filmá-las, tanto faz. Sorridentes, elas vibravam como se estivessem no show de suas bandas preferidas.


Sangrando e quase não me aguentando em pé, algemado e sendo empurrado pro camburão, ainda falei pra elas algo como “por quê?”


– Francamente, meu querido, você acha que a gente ia mesmo te levar pra Alemanha? Logo, você estaria em todos os canais de TV, em todos os sites e nas redes sociais denunciando o que acontece por aqui, causando comoção e aumentando a grita mundial contra seu país. Isso ia acabar com a nossa diversão, seu idiota! Tem gente na Europa que nunca sentiu o cheiro de gasolina e diesel, sabia? O paraíso também cansa de vez em quando, querido. Faz três dias que avisamos a polícia que levaríamos um traidor para o aeroporto dentro de uma mala. Eles adoraram suas histórias de livros contrabandeados, internet ilegal e outras coisinhas. Obrigada por for fazer dessa viagem deliciosa uma aventura inesquecível. Tenha uma boa... hã... vida! Auf wiedersehen!


 

Enquanto finalizo este relato ouço a aproximação dos guardas que me levarão para a frente do pelotão de fuzilamento. Finalmente vou parar de sentir dor. Foram três meses de torturas diárias. Queriam saber tudo sobre o que falei para as compassivas e empáticas meninas da Alemanha. Não tiraram nada de mim. Não sabem para onde enviei minha avó e o resto da família depois de lhes contar meus planos. Quem não sabia que iriam atrás deles depois do que eu fiz, desse certo ou não meu plano? É isso. Quem pode dizer que não tentei? Mesmo que soubesse do resultado, é o que faria novamente.


Esqueci de contar pras gringas que a pena de morte foi instituída no terceiro mandato.

 

 

 

FIM