sexta-feira, outubro 26, 2007

ARISTÓTELES OMORRIS É ENTREVISTADO - Parte 1

Caro leitor, não é do nosso feitio “chupar” matérias de outros órgãos de comunicação, mas este é um caso especial. Trata-se de uma entrevista concedida por um dos nossos mais reles... quer dizer: por um dos nossos maiores colaboradores, o colunista Aristóteles Omorris. Fomos autorizados pela prestigiosa revista Tapa Capital a publicar na íntegra a entrevista abaixo, que é uma forma de o nosso leitor (perdão por isso, leitor) conhecer melhor essa figura ímpar, esse monstro (de feiúra) do jornalismo brasileiro. Como a reportagem foi muito longa, preferimos dividi-la em duas partes. Afinal, quem quer morrer de overdose de Aristóteles Omorris?


O que é Aristóteles Omorris?

Por Argemiropípedes Raimundopolos

Eram 4 horas de uma tarde abafada na favela de Paraizópolis, no dia em que foi registrada a maior taxa de poluição no ano na capital paulista. Fomos instruídos – Paulinho Cegueta, fotógrafo, e eu – a chegar à “suntuosa residência” (como o próprio dono a qualificara) de nosso entrevistado pontualmente às 9 da manhã. Nesse horário fomos recebidos por um jovem de seus no máximo 20 anos, afrodescendente, boca pouco povoada de dentes. “O senhor Omorris ainda se encontra dormindo. Vocês esperam?”, perguntou o rapaz. Ao meio-dia, Aristóteles Omorris, rosto completamente amassado, com um pijama que deixa à mostra a barriga que escorria cintura abaixo, cruzou a sala e nem sequer olhou para os visitantes. O rapaz correu à cozinha para servi-lo. Perguntei se podíamos começar a entrevista. O dono da casa disse alguma coisa ao jovem. O tom era de aspereza, mas não ouvimos o que foi dito. “O senhor Omorris pediu para dizer que não dá entrevistas antes de almoçar. No momento ele se encontra degustando seu café-da-manhã. Vocês esperam?” Por volta das 13 horas o colunista foi até os fundos da casa, mais precisamente, ao setor coberto de lona e papelão, e começou a gritar: “Lorde Byron! Byron! Venha cá, bastardo!” Então o famoso macaco de Aristóteles Omorris não era uma lenda? “Não. O bichinho existe”, afirmou Tião Macalé, como era conhecido o rapaz que nos recebeu. “Olha a marmita!”, bradou uma voz de garoto lá fora. Eram 3 horas da tarde e chegava o almoço do nosso anfitrião, que finalmente deixou suas conferências com Lorde Byron. “A dona Violeta falou que amanhã não tem marmita se o senhor não pagar os três meses atrasados”, avisou o entregador. Omorris nem olhou para ele. Apenas fez um gesto com as mãos, típico de quem manda alguém embora. Macalé foi atrás do garoto e, no meio da rua, chegou quase a ajoelhar-se durante sua argumentação. Depois do almoço, Aristóteles chamou seu ajudante, que logo veio a nós. “O senhor Omorris vai fazer um leve repouso e deverá atendê-los em seguida. Vocês esperam?” Eram 4 horas de uma tarde abafada na favela de Paraizópolis, no dia em que foi registrada a maior taxa de poluição no ano na capital paulista. Nesse momento, enfim, Aristóteles Omorris, trajando um smoking que claramente lhe era alguns números abaixo de seu tamanho, além de ostentar vários remendos, entrou na sala e ainda sem olhar para os visitantes, sentou-se em uma imensa e carcomida poltrona e perguntou, com ar imperial: “Em que posso ajudá-los?”

Tapa Capital O senhor nunca falou de sua origem, onde nasceu, onde cresceu, como foi sua infância, seus pais, irmãos (se os teve). O senhor poderia falar sobre isso?
Aristóteles Omorris – Não.

TC – Qual é sua formação escolar?
AO – Não gosto de falar sobre isso.

TC – Por que não?
AO – Sempre fui muito injustiçado na escola. Como fui sempre um ser à frente de seu tempo, professores, diretores e os malditos coleguinhas não me entendiam. Eu era um aluno que não aceitava o que estava escrito nos livros. Assim, não estudava e não fazia as tarefas exigidas pelos professores. Nas provas, eu colocava as minhas verdades, que é o que todo mundo devia seguir. Infelizmente os canalhas não aceitavam e me reprovavam.

TC – Alguns de seus antigos colegas disseram que o senhor não estudava e não fazia as tarefas para poder ir para a rua, jogar pedras em pessoas, riscar carros com tampinhas de garrafa, ser flanelinha de estacionamento, pedir dinheiro no sinal, entre outras atividades não exatamente abonadoras...
AO – (irritado) Calúnias! Calúnias! Quem disse isso? Vou processar um por um! (vermelho)

TC – Quer dizer que é verdade que o senhor não completou seus estudos?
AO – Quer dizer que eu me recusei a fazer o caminho dos medíocres. A escola só me atrasaria. Faculdades são prisões do pensamento. Eu queria voar cada vez mais alto, deixar meu intelecto alcançar seu destino, que é expandir ao infinito e abraçar o universo! (exaltado, braços aberto e olhando para o teto)

TC – Por isso o senhor parou de estudar no que hoje equivale ao primeiro ano do ensino fundamental, depois de 13 reprovações?
AO – Mudemos de assunto.

TC – Tudo bem. Falemos então das polêmicas do momento. O senhor é contra ou a favor da liberação do aborto?
AO – (pausa) Veja bem... (pausa um pouco mais longa. De 30 minutos) Engraçado... (outra pausa igual) Meu pai me disse que minha mãe foi fervorosamente contra o aborto. Dizia que era sempre a favor da vida e coisa e tal. Mas, estranhamente, certo dia ela passou a ser favorável ao aborto. Virou até militante da causa.

TC – Quando foi isso?
AO – Depois que eu nasci.

TC – (pausa para constrangimento) Mas o senhor não respondeu qual é sua posição sobre o assunto...
AO – Veja bem... (irritante nova pausa de 30 minutos) Eu acho que tendo a ser contra. Se minha mãe fosse a favor antes do meu nascimento, talvez o mundo tivesse perdido a chance de ter caminhando sobre si um ser como eu. Quantos outros Aristóteles Omorris não estaríamos perdendo se os abortos passassem a ser feitos a torto e a direito, você não concorda?

TC – (pausa para novo constrangimento e uma limpadinha de garganta) Mas o senhor é favorável a algum tipo de controle de natalidade?
AO – A priori sim. Mas muitas vezes o exato oposto me deixa muito triste. (pausa para choro. Sem lágrimas) Tenho muitos casais amigos entre a elite do poder mundial que não conseguem ter filhos. Tentam todos os tipos de tratamento com os melhores médicos do mundo inteiro e nada. Meu conselho para eles é o seguinte: empobreçam!

TC – Como assim?
AO – Ora, ora... Não é fato de que a taxa de natalidade entre os pobres é altíssima? Não é fato que basta encostar de leve numa mulher pobre – melhor ainda se for negra – que ela logo engravida? Então!? Olá, meu bom amigo rico: deixe seu dinheiro comigo, transforme-se num pobre e tenha uma família quilométrica.


Fim da primeira parte

terça-feira, outubro 23, 2007

FUTEBOL: UM PROBLEMA RECORRENTE

O artigo abaixo eu escrevi em 2003. Quatro anos se passaram e eu não preciso queimar meus parcos neurônios para abordar o mesmo assunto, pois nada mudou de lá pra cá. Como este texto é inédito para este blog (já que o cometi originalmente para a Folha do Sudoeste), "brindo" a todos com sua postagem.



A temporada da Raposa

Como prometido no festival de besteiras... ou melhor, como prometido no artigo anterior (também publicado na Folha do Sudoeste, no já longínquo 2003), vamos usar exemplos concretos para mostrar como se pode implantar um calendário em que os times pequenos não fiquem desativados por quase 90% da temporada futebolística. Tomemos como paradigma a Jataiense, que neste ano participou do Campeonato Goiano da Primeira Divisão por menos de dois meses. E só. O período de março a dezembro é um eterno coçar, uma estúpida espera pela próxima edição do “Goianão”.
Pelo calendário proposto aqui mesmo neste espaço, a Raposa do Sudoeste iniciaria suas atividades em 15 de julho. Faria sua pré-temporada, com treinos e amistosos, até meados de agosto, quando começaria a primeira fase do Campeonato Goiano da Primeira Divisão – sem os clubes goianos que jogam o Campeonato Brasileiro (há quatro anos o Goiás estava na Série A, enquanto Vila Nova e Anapolina disputavam a B). O modelo ideal seria o de pontos corridos em turno e returno durante os seis meses reservados para os estaduais. Se os clubes optarem por um torneio dividido em fases, que fique registrada no regulamento uma norma que evite a eliminação de qualquer time antes que a fase inicial complete cinco meses de disputa.
Terminada a fase inicial do Goianão, em meados ou final de fevereiro do ano seguinte (dependendo da data do carnaval), a Jataiense, caso tenha chegado em primeiro ou em segundo lugar, estará classificada para a Copa do Brasil do ano seguinte e vai automaticamente para a fase regional do Campeonato Brasileiro da Série C, que começa já em março. Estaria ainda garantida na fase decisiva do Campeonato Goiano, onde, nos dois últimos meses da temporada, enfrentaria Goiás, Vila e Anapolina – além dos outros times de melhor colocação na fase inicial.
Na primeira fase da Série C nacional, com a ajuda da CBF em relação às despesas, a Raposa enfrenta o outro classificado goiano e mais os campeões e vices de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal, em ida e volta, todos contra todos, passando os dois primeiros colocados para a segunda fase. Ou seja, são mais 14 jogos garantidos na temporada, o que representa no mínimo mais 14 datas – ou quase três meses de atividade, utilizando-se dois ou três meios de semana.
Na segunda fase, já em nível nacional, com 16 classificados, dois de cada chave regionalizada, começa o mata-mata, com confrontos sorteados e passagens aéreas financiadas pela CBF. Ao final, em junho, os dois primeiros sobem para a Série B do Campeonato Brasileiro de forma direta, enquanto as equipes que terminarem do terceiro ao sexto lugares ainda terão a chance de subir pelo confronto direto e eliminatório, em duas partidas, com os times da Série B que terminarem do 19° ao 22° lugares. A definição do quinto e do sexto melhores colocados se daria por critérios técnicos ou pelo confronto entre os perdedores das quartas-de-final. Pelo menos essa decisão eu deixo para os clubes e/ou a CBF...
Suponhamos – e torçamos – que a Raposa tenha subido para a Série B nacional depois da disputa de nossa hipotética Série C. Assim, na temporada seguinte ela passaria o ano todo disputando essa competição, não precisaria participar da fase inicial do Campeonato Goiano (a não ser com o time reserva, somente para movimentar todo o elenco) e ainda jogaria a Copa do Brasil, quando teria a oportunidade ímpar de enfrentar clubes do porte de Flamengo, Corinthians e todo o resto da turma do Clube dos 13.
Caso o clube não seja campeão ou vice da primeira fase do estadual, ele ainda assim não seria relegado à inatividade. Juntamente com os outros eliminados e talvez com os times da segunda e terceira divisões do estado, ele jogaria uma seletiva (regionalizada) para a Copa do Brasil do ano seguinte, que, ao final apontaria os últimos 26 participantes da competição – um punhado de cada chave regional.
Em meados de junho viriam as tão merecidas férias para a Jataiense e todos os outros clubes. Ficaríamos apenas 30 dias sem ver nosso time funcionando a todo vapor. Afinal, a temporada da Raposa passaria a durar quase um ano inteiro.

domingo, outubro 07, 2007

TRECHO DO PROSCRITO "O PARTIDO DO INDIVÍDUO"

O trecho abaixo faz parte de uma espécie de viagem onírica empreendida pelo protagonista do livro O Partido do Indivíduo depois de sofrer um acidente que o levou ao coma.


Entraram num belo apartamento de Copacabana. A família reunida assistia compungida às notícias do mundo.
— Papai — disse a garotinha, depois de assistir a uma cena de latro­cínio —, por que aquele moço fez pêi-pêi no outro e levou aqueles papeizi­nhos que estavam dentro da gaveta?
— Se você morasse na terra dele, minha filha, só com aqueles papeizi­nhos você poderia comprar comida no mercado da esquina. Comprar é trocar papel ou metal por qualquer coisa, mais ou menos assim. Seu avô lembra como era antes da Assembléia.
— Comprar? Trocar comida por papel? Mas o seu Menezes entrega pão e leite pra gente sem pedir nada em troca. E quem decide quantos pedaços de papel vale um pão e quantos vale um carro?
— Desculpe-me, Sonho — disse Laszlo —, mas essa é difícil de engo­lir. Em algum ponto do sistema deve haver dinheiro. Quem deu este apartamen­to a esta família, como eles conseguiram um carro, o que ganha quem produz um carro e o entrega de graça? O governo dá tudo? Mas como, se o governo vive sem impostos?
— Ai, uma mente tão jovem e já tão corrompida — suspirou Sonho. — Sociedade sem dinheiro: de súbito, acabaram-se as classes. Por decreto, de repente cédulas, moedas, talões de cheque, títulos, ações já não valiam na­da. A propriedade privada ficou. Quem já vivia confortavelmente, continuou na mesma. Os ex-mais pobres reuniram-se em cooperativas e, nos terrenos doa­dos pelo governo, construíram residências a seu gosto. O material também foi doado: por que os fabricantes de materiais de construção os segurariam se não iriam ganhar nada com isso? Aliás, os empresários decidiram dividir a propriedade de suas empresas — comércio, indústria, serviços — com seus ex-empregados, agora elevados à categoria de seus iguais. O Brasil passou a fabricar de tudo. Sem burocracia (que foi feita para tirar dinheiro das pes­soas pelos meios mais legais possíveis), abriam-se pequenas, médias e gran­des empresas aos borbotões, todas de propriedade coletiva. Não havia disputa pela direção, pois não havia salário. As pessoas passaram a trabalhar para si próprias e para os outros. Os agricultores trazem seus produtos para a cidade e oferecem-nos às pessoas. Depois passam pelas “lojas” e levam o que precisam. Como, no fundo, é uma sociedade igual à de seu plano, há uma mino­ria aética, um tanto quanto psicopática, marginal, que começou a promover saques ou retiradas de bens de forma vultosa demais. No início aconteciam abusos — pessoas retiravam, por exemplo, quatro, cinco, dezenas de carros, numa ganância inercial. Por isso, não foi extinta a polícia nem a justiça. Estas passaram a funcionar perfeitamente bem, pois seus deslizes históricos sempre foram motivados pelo poder econômico. Sem dinheiro, sem cobiça. Quase sempre. Então, com um incidente aqui, outro ali, o Brasil deste mundo vai levando uma vida até que agradável. Pena que os outros países estejam meio que propensos a não adotar este tipo de sociedade depois que vencer o prazo.
— Por quê? O que ocorre aqui, eu percebo, é um acordo informal entre as pessoas: todos sentem que podem ter tudo o que precisam se fizerem a sua parte. O sujeito que fabrica coadores de café sabe que em troca de seu tra­balho ele terá seu carro, sua casa, sua pasta de dente, seu sapato... Ele tem a consciência tranqüila. Quem não trabalha mas usufrui do resultado do trabalho alheio talvez viva com remorsos. Uma sensação desagradável. Passar uma vida inteira sentindo culpa é pior que prisão perpétua. Há claro os so­ciopatas, psicopatas, os preguiçosos convictos, os malandros inconseqüentes. Mas por que acabar com essa experiência? Ou melhor, por que não estendê-la ao resto do mundo?
— Simples. Os países desenvolvidos, em 1950, acreditavam sinceramente neste modelo, criado por um dissidente indiano. Escolheram o Brasil, além dos motivos que já citei, pela pequena elite que o país possuía: haveria menos pessoas ricas para protestar. Muitas foram para o exterior antes que abolissem o dinheiro. Acontece que a elite dos países industrializados au­mentou sensivelmente nesses quase cinqüenta anos. Resultado: há uma pressão gigantesca contra a brasilização do mundo. Embora as classes médias e baixas de todo o planeta estejam plenamente favoráveis, empresários, líderes de seitas religiosas, banqueiros, traficantes de drogas e mesmo a maior parte dos políticos posicionam-se contra, criando milhares de obstáculos, empeci­lhos e tecnicalidades. Onde já se viu um Rockefeller deixar seu perfumado, climatizado, embonecado escritório para apertar parafuso seis ou oito horas por dia?, costumam argumentar os elitistas. Esquecem-se de que funções exe­cutivas não serão extintas, nem a propriedade privada. Rockefeller não per­deria nada: suas empresas continuariam suas, permaneceria em seu cargo, se quisesse. Apenas deixaria de receber dividendos, fazer retiradas. Em contra­partida, não precisaria mais preocupar-se com a folha de pagamento. Aí eles argumentam que Rockefeller ajuda muita gente através de suas fundações fi­lantrópicas...
— Ora, sem a demanda por dinheiro para sobreviver, quem necessitaria de entidades filantrópicas?
— Correto. Mas sem pobres para viver a sua custa, como você encobriria com atos “caridosos” a sua verdadeira compulsão por dinheiro, por lucro? Como redimir sua alma gananciosa?
— Que lástima. Pelo menos o Brasil poderá continuar vivendo sem di­nheiro depois de vencido o prazo, não? O que foi uma experiência poderá tor­nar-se perene?
— Bem, há boatos de que as grandes multinacionais estão de olho gor­díssimo sobre o “mercado virgem” do Brasil do próximo século.
Numa contração facial, Laszlo revelou todo seu desapontamento. Quando piscou, já estava num plano diferente. Era um lugar calmo, de ar puro, com jeito de cidade pequena. As ruas eram limpas, os carros respeitavam as leis de trânsito, pessoas conversavam pelas calçadas, pelos alpendres.
— Este mesmo ponto geográfico em seu mundo — explicou Sonho — cor­responde a uma das maiores favelas de São Paulo. Setor de onde surgem notícias de chacinas, de ações de justiceiros e de batidas da polícia em busca de bocas de fumo. Este lugar, em seu plano, também seria lindo assim caso tivesse ocorrido lá o que aconteceu aqui.
— Neste mundo, o Brasil é que é desenvolvido, é isso?
— Digamos que neste mundo o Brasil é mais humano. Como em seu Congres­so e em seu governo, houve graves crises político-econômico-institucionais por aqui. Em sua dimensão, foi feita uma limpeza parcial no quadro político: alguns personagens daninhos à sociedade foram para o ostracismo, escorraça­dos ou pelo público ou pela via institucional — ou por ambos. Outros, po­rém, permanecem articulando, montando seus esquemas, defendendo seus inte­resses particulares e de seu grupo em detrimento do anseio popular. Em mui­tos casos houve uma mera troca de nomes: a prática continuou igual. Neste plano, contudo, um lance fortuito revelou todos os conluios, maquinações, tramóias de um até então intocável senador, cujas ligações açambarcavam não apenas a esfera política, como também amplos setores da sociedade. Ele não caiu sozinho. Puxou consigo uma série de luminares, astros, empresários-mo­delo, homens do ano e uma miss Brasil, coitada. O povo, num primeiro momen­to, ficou mudo. Quem ainda tinha alguma inocência, deixou de tê-la no momen­to em que o último tubarão foi para a frigideira. Revoltado contra os sécu­los de improbidades, iniqüidades, injustiças e imoralidades que em seu nome foram exercidas, o povo, também remoendo-se devido a sua mistura de ingenui­dade e conformismo, teve sua taliônica vingança nas eleições seguintes. Ne­nhum político com mais de quatro anos de carreira foi eleito; nenhum candi­dato nem de leve ligado a qualquer um dos caídos foi eleito; nenhum político com o mais leve acento demagógico foi eleito; todos os candidatos que nega­ram-se a fornecer sua lista de doadores e a quantia doada foram rejeitados.
— Então como foram preenchidos os cargos públicos? — perguntou Las­zlo, meio em tom de mofa.
— Foram eleitos os melhores — ou pelo menos aqueles que os eleitores consideraram os menos piores. Gente que nunca pensara em entrar para a política entrou. E ganhou. Pessoas com reputação ilibada ascenderam ao poder. Verbas que sumiam deixaram de desaparecer; obras que não acabavam foram fi­nalizadas; especialistas foram colocados nos lugares antes ocupados por po­líticos e apaniguados; os corruptos foram sumariamente demitidos; os suspei­tos licenciados até que provassem sua culpa; em detrimento do câmbio, da bolsa, da captação de dinheiro especulativo, optou-se por uma guerra contra a exclusão social como principal meta dos governos, sem descuidar de aspec­tos secundários como o câmbio, a bolsa e a captação de dinheiro especulati­vo. O primeiro sinal visível de mudança neste lugar, Laszlo, foi a chegada do asfalto e do saneamento básico. Logo percebeu-se que a vila esvaziava-se mais durante todo o dia: as pessoas saíam para trabalhar e, à noite, os ou­trora desocupados, ex-boêmios, ex-traficantes, ex-assaltantes, ex-toxicôma­nos, tinham a opção de freqüentar as novas e equipadas escolas do setor, onde os professores eram dignamente pagos. Sempre há quem não adapta-se ao novo tipo de vida: traficantes, assaltantes e toxicômanos empedernidos, ago­ra em menor número e por isso mais facilmente identificáveis, eram encami­nhados às respectivas instituições por eles responsáveis. Quarenta por cento eram devolvidos “limpos” à sociedade. Os outros, infelizmente, eram privados da liberdade. Aos poucos foram surgindo bons carros por aqui. As velhas ca­sas de pau-a-pique ou de plástico foram sendo substituídas por moradas de­centes. Então chegou um certo dia em que tudo ficou assim, do jeito que você está vendo.
— E os políticos corruptos nunca voltaram? E dos novos nenhum corrom­peu-se?
— Tendo caviar sempre à disposição, quem preferiria jiló? Não, o povo experimentou e gostou. É verdade que houve ensaios de improbidade entre os novos governantes, mas bastava uma leve suspeita para que seus próprios pa­res pressionassem o acusado a renunciar, em casos flagrantes, ou a pedir licença para que fosse investigado. Em dois casos, homens públicos foram reconduzidos a sua posição.