domingo, outubro 07, 2007

TRECHO DO PROSCRITO "O PARTIDO DO INDIVÍDUO"

O trecho abaixo faz parte de uma espécie de viagem onírica empreendida pelo protagonista do livro O Partido do Indivíduo depois de sofrer um acidente que o levou ao coma.


Entraram num belo apartamento de Copacabana. A família reunida assistia compungida às notícias do mundo.
— Papai — disse a garotinha, depois de assistir a uma cena de latro­cínio —, por que aquele moço fez pêi-pêi no outro e levou aqueles papeizi­nhos que estavam dentro da gaveta?
— Se você morasse na terra dele, minha filha, só com aqueles papeizi­nhos você poderia comprar comida no mercado da esquina. Comprar é trocar papel ou metal por qualquer coisa, mais ou menos assim. Seu avô lembra como era antes da Assembléia.
— Comprar? Trocar comida por papel? Mas o seu Menezes entrega pão e leite pra gente sem pedir nada em troca. E quem decide quantos pedaços de papel vale um pão e quantos vale um carro?
— Desculpe-me, Sonho — disse Laszlo —, mas essa é difícil de engo­lir. Em algum ponto do sistema deve haver dinheiro. Quem deu este apartamen­to a esta família, como eles conseguiram um carro, o que ganha quem produz um carro e o entrega de graça? O governo dá tudo? Mas como, se o governo vive sem impostos?
— Ai, uma mente tão jovem e já tão corrompida — suspirou Sonho. — Sociedade sem dinheiro: de súbito, acabaram-se as classes. Por decreto, de repente cédulas, moedas, talões de cheque, títulos, ações já não valiam na­da. A propriedade privada ficou. Quem já vivia confortavelmente, continuou na mesma. Os ex-mais pobres reuniram-se em cooperativas e, nos terrenos doa­dos pelo governo, construíram residências a seu gosto. O material também foi doado: por que os fabricantes de materiais de construção os segurariam se não iriam ganhar nada com isso? Aliás, os empresários decidiram dividir a propriedade de suas empresas — comércio, indústria, serviços — com seus ex-empregados, agora elevados à categoria de seus iguais. O Brasil passou a fabricar de tudo. Sem burocracia (que foi feita para tirar dinheiro das pes­soas pelos meios mais legais possíveis), abriam-se pequenas, médias e gran­des empresas aos borbotões, todas de propriedade coletiva. Não havia disputa pela direção, pois não havia salário. As pessoas passaram a trabalhar para si próprias e para os outros. Os agricultores trazem seus produtos para a cidade e oferecem-nos às pessoas. Depois passam pelas “lojas” e levam o que precisam. Como, no fundo, é uma sociedade igual à de seu plano, há uma mino­ria aética, um tanto quanto psicopática, marginal, que começou a promover saques ou retiradas de bens de forma vultosa demais. No início aconteciam abusos — pessoas retiravam, por exemplo, quatro, cinco, dezenas de carros, numa ganância inercial. Por isso, não foi extinta a polícia nem a justiça. Estas passaram a funcionar perfeitamente bem, pois seus deslizes históricos sempre foram motivados pelo poder econômico. Sem dinheiro, sem cobiça. Quase sempre. Então, com um incidente aqui, outro ali, o Brasil deste mundo vai levando uma vida até que agradável. Pena que os outros países estejam meio que propensos a não adotar este tipo de sociedade depois que vencer o prazo.
— Por quê? O que ocorre aqui, eu percebo, é um acordo informal entre as pessoas: todos sentem que podem ter tudo o que precisam se fizerem a sua parte. O sujeito que fabrica coadores de café sabe que em troca de seu tra­balho ele terá seu carro, sua casa, sua pasta de dente, seu sapato... Ele tem a consciência tranqüila. Quem não trabalha mas usufrui do resultado do trabalho alheio talvez viva com remorsos. Uma sensação desagradável. Passar uma vida inteira sentindo culpa é pior que prisão perpétua. Há claro os so­ciopatas, psicopatas, os preguiçosos convictos, os malandros inconseqüentes. Mas por que acabar com essa experiência? Ou melhor, por que não estendê-la ao resto do mundo?
— Simples. Os países desenvolvidos, em 1950, acreditavam sinceramente neste modelo, criado por um dissidente indiano. Escolheram o Brasil, além dos motivos que já citei, pela pequena elite que o país possuía: haveria menos pessoas ricas para protestar. Muitas foram para o exterior antes que abolissem o dinheiro. Acontece que a elite dos países industrializados au­mentou sensivelmente nesses quase cinqüenta anos. Resultado: há uma pressão gigantesca contra a brasilização do mundo. Embora as classes médias e baixas de todo o planeta estejam plenamente favoráveis, empresários, líderes de seitas religiosas, banqueiros, traficantes de drogas e mesmo a maior parte dos políticos posicionam-se contra, criando milhares de obstáculos, empeci­lhos e tecnicalidades. Onde já se viu um Rockefeller deixar seu perfumado, climatizado, embonecado escritório para apertar parafuso seis ou oito horas por dia?, costumam argumentar os elitistas. Esquecem-se de que funções exe­cutivas não serão extintas, nem a propriedade privada. Rockefeller não per­deria nada: suas empresas continuariam suas, permaneceria em seu cargo, se quisesse. Apenas deixaria de receber dividendos, fazer retiradas. Em contra­partida, não precisaria mais preocupar-se com a folha de pagamento. Aí eles argumentam que Rockefeller ajuda muita gente através de suas fundações fi­lantrópicas...
— Ora, sem a demanda por dinheiro para sobreviver, quem necessitaria de entidades filantrópicas?
— Correto. Mas sem pobres para viver a sua custa, como você encobriria com atos “caridosos” a sua verdadeira compulsão por dinheiro, por lucro? Como redimir sua alma gananciosa?
— Que lástima. Pelo menos o Brasil poderá continuar vivendo sem di­nheiro depois de vencido o prazo, não? O que foi uma experiência poderá tor­nar-se perene?
— Bem, há boatos de que as grandes multinacionais estão de olho gor­díssimo sobre o “mercado virgem” do Brasil do próximo século.
Numa contração facial, Laszlo revelou todo seu desapontamento. Quando piscou, já estava num plano diferente. Era um lugar calmo, de ar puro, com jeito de cidade pequena. As ruas eram limpas, os carros respeitavam as leis de trânsito, pessoas conversavam pelas calçadas, pelos alpendres.
— Este mesmo ponto geográfico em seu mundo — explicou Sonho — cor­responde a uma das maiores favelas de São Paulo. Setor de onde surgem notícias de chacinas, de ações de justiceiros e de batidas da polícia em busca de bocas de fumo. Este lugar, em seu plano, também seria lindo assim caso tivesse ocorrido lá o que aconteceu aqui.
— Neste mundo, o Brasil é que é desenvolvido, é isso?
— Digamos que neste mundo o Brasil é mais humano. Como em seu Congres­so e em seu governo, houve graves crises político-econômico-institucionais por aqui. Em sua dimensão, foi feita uma limpeza parcial no quadro político: alguns personagens daninhos à sociedade foram para o ostracismo, escorraça­dos ou pelo público ou pela via institucional — ou por ambos. Outros, po­rém, permanecem articulando, montando seus esquemas, defendendo seus inte­resses particulares e de seu grupo em detrimento do anseio popular. Em mui­tos casos houve uma mera troca de nomes: a prática continuou igual. Neste plano, contudo, um lance fortuito revelou todos os conluios, maquinações, tramóias de um até então intocável senador, cujas ligações açambarcavam não apenas a esfera política, como também amplos setores da sociedade. Ele não caiu sozinho. Puxou consigo uma série de luminares, astros, empresários-mo­delo, homens do ano e uma miss Brasil, coitada. O povo, num primeiro momen­to, ficou mudo. Quem ainda tinha alguma inocência, deixou de tê-la no momen­to em que o último tubarão foi para a frigideira. Revoltado contra os sécu­los de improbidades, iniqüidades, injustiças e imoralidades que em seu nome foram exercidas, o povo, também remoendo-se devido a sua mistura de ingenui­dade e conformismo, teve sua taliônica vingança nas eleições seguintes. Ne­nhum político com mais de quatro anos de carreira foi eleito; nenhum candi­dato nem de leve ligado a qualquer um dos caídos foi eleito; nenhum político com o mais leve acento demagógico foi eleito; todos os candidatos que nega­ram-se a fornecer sua lista de doadores e a quantia doada foram rejeitados.
— Então como foram preenchidos os cargos públicos? — perguntou Las­zlo, meio em tom de mofa.
— Foram eleitos os melhores — ou pelo menos aqueles que os eleitores consideraram os menos piores. Gente que nunca pensara em entrar para a política entrou. E ganhou. Pessoas com reputação ilibada ascenderam ao poder. Verbas que sumiam deixaram de desaparecer; obras que não acabavam foram fi­nalizadas; especialistas foram colocados nos lugares antes ocupados por po­líticos e apaniguados; os corruptos foram sumariamente demitidos; os suspei­tos licenciados até que provassem sua culpa; em detrimento do câmbio, da bolsa, da captação de dinheiro especulativo, optou-se por uma guerra contra a exclusão social como principal meta dos governos, sem descuidar de aspec­tos secundários como o câmbio, a bolsa e a captação de dinheiro especulati­vo. O primeiro sinal visível de mudança neste lugar, Laszlo, foi a chegada do asfalto e do saneamento básico. Logo percebeu-se que a vila esvaziava-se mais durante todo o dia: as pessoas saíam para trabalhar e, à noite, os ou­trora desocupados, ex-boêmios, ex-traficantes, ex-assaltantes, ex-toxicôma­nos, tinham a opção de freqüentar as novas e equipadas escolas do setor, onde os professores eram dignamente pagos. Sempre há quem não adapta-se ao novo tipo de vida: traficantes, assaltantes e toxicômanos empedernidos, ago­ra em menor número e por isso mais facilmente identificáveis, eram encami­nhados às respectivas instituições por eles responsáveis. Quarenta por cento eram devolvidos “limpos” à sociedade. Os outros, infelizmente, eram privados da liberdade. Aos poucos foram surgindo bons carros por aqui. As velhas ca­sas de pau-a-pique ou de plástico foram sendo substituídas por moradas de­centes. Então chegou um certo dia em que tudo ficou assim, do jeito que você está vendo.
— E os políticos corruptos nunca voltaram? E dos novos nenhum corrom­peu-se?
— Tendo caviar sempre à disposição, quem preferiria jiló? Não, o povo experimentou e gostou. É verdade que houve ensaios de improbidade entre os novos governantes, mas bastava uma leve suspeita para que seus próprios pa­res pressionassem o acusado a renunciar, em casos flagrantes, ou a pedir licença para que fosse investigado. Em dois casos, homens públicos foram reconduzidos a sua posição.

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