domingo, julho 22, 2007

TRECHO DO LIVRO "CESALPÍNIA"



- Dies irae, dies illa,
Solvet saeculum in favilla,
Teste David cum Sibylla

Aqueles foram dias de ira; tudo vira cinza, favila; como testemunham Davi e Sibila. Mas nosso mundo não se desfez em cinzas. Nossa honra é que se esfrangalhou. Mas hoje estamos acabando de recolher os pedaços. Sim, pois nos impuseram um sistema tipo cesalpínico, já em pleno funcionamento com vocês na época. Com a diferença que ao rés do chão e no alto da montanha ainda mantêm seus canos apontados para nós. Que interessa ao governo brasi­leiro a presença de seres tão fortes e determinados em sua sociedade em câmera lenta?
— A que sociedade interessa a presença de assassinos contumazes em seu seio?
— Lucano da Cesalpínia está novamente a justificar as coercitivas ati­tudes brasílicas? “Os espíritos medíocres comumente condenam o que está além de seu alcance”. La Rochefoucauld. Pois bem, meu jovem, vocês têm conectores há mais tempo que nós. Todavia sempre portaram-se caninamente durante todo o tempo. Nós não. Tivemos conectores que perderam a vida em sua busca pela justiça. Sabe qual é minha vontade, Luc? É matar um a um todos os brasilei­ros. Eliminá-los da face da Terra. Sem culpa, sem remorsos. Justiça históri­ca.
No século passado, Pedro II e Floriano mandaram fuzilar conectores nos­sos. Quantos dos seus passaram por uma situação assim? Ouvi dizer que tive­ram uma mulher na função — gargalhada profunda. — Uma mulher! A fraqueza personificada. “Fragilidade, teu nome”... você sabe qual é. Não tinha como dar certo. Elas são portadoras de uma histeria histórica. Ou escreveram ao longo das eras uma história histérica.
— Nossa conectora foi caluniada pelo preconceito. Do tipo que você agora destila.
— Terrível, não? O Brasil a caluniou. E você ainda justifica os atos deste país.
— Sei distinguir o certo do errado. Condeno apenas o que o Brasil faz de errado.
— Dizem que a expectativa de vida na Cesalpínia é maior que a média européia, maior que a japonesa. Vocês comprovaram a tese segundo a qual os covardes vivem mais.
— Ora, seu... — Lucano levantou-se, esquecendo a dor dilacerante, e correu na direção do mascarado. Agarrou seu pescoço mas foi repelido com um chute justamente no estômago. Foi ao chão, onde ficou a contorcer-se.
— Então havia um instinto assassino escondido aí o tempo todo, não. Contorça-se, verme! — disse o mascarado, enquanto chutava as costas de Lu­cano. — Então todo o treinamento dos discípulos de Pavlov não o mataram para a vida. Fico feliz por você — chutou sua nuca.
Depois levantou-o e colocou-o novamente no sofá.
— Com dificuldade para respirar? Isso passa. Tome meu lenço. Limpe-se. Depois vou guardá-lo sujo de seu sangue. Para recordação — ficou calado por algum tempo. — Talvez esta tenha sido a ação mais hostil de sua vida, não? Se você se tortura por nada, fico a imaginar o que você vai sentir doravante depois de tentar me matar. Sim, pois ninguém aperta o pescoço de outro como você fez só para rebater um argumento. A menos que seja um hábito de sua terra. A uma tese contrária responde-se com uma tentativa de estrangulamen­to. Nada mal.
Mas se você me matasse, aí sim teria motivos para se torturar. Pois você se recrimina como um Macbeth seco. O que é um Macbeth seco? Um Macbeth sem sangue nas mãos, sem fantasmas a atormentá-lo.

Ter consciência
Do ato que pratiquei — melhor seria
Perder conhecimento de mim mesmo!

Mas o acúmulo de sangue em sua vida fê-lo ver a verdade. Com o tempo e com os acontecimentos, culminando com a morte de sua mulher, Macbeth perce­beu a insignificância da vida, pequena demais para que nos importemos com ela. Então ele diz que

Todos esses nossos ontens
Têm alumiado aos tontos que nós somos
Nosso caminho para o pó da morte.
Breve candeia, apaga-te! Que a vida
É uma sombra ambulante: um pobre ator
Que gesticula em cena uma hora ou duas,
Depois não se ouve mais; um conto cheio
De bulha e fúria, dito por um louco,
Significando nada.

Macbeth no início era um Lucano. Ou um quase Lucano. No máximo um homem que se preocupava. No final era um típico terrogumense. Um terrogumense nii­lista. Mesmo quando tudo estava perdido, com seu castelo infestado de inimi­gos, ele não fraquejou.

Por que haveria eu de, arremedando
O insensato romano, traspassar-me
Com a minha própria espada? Enquanto vejo
Inimigos com vida, melhor ficam
Neles que em mim as cutiladas.

Um bela filosofia, não, Lucano da Cesalpínia?
— Na teoria assim seriam vocês. Só na teoria.
— Como só na teoria?
— Desde que chegaram ao Brasil você têm agido apenas como covardes, atacando viajantes, cidades desarmadas, raptando mulheres e fugindo.
— Fugindo?
— A história do ardil contra Caxias foi um meio desesperado para fugir ao cerco do exército. O desfiladeiro foi a escolha adequada para que pudes­sem sentir-se em segurança. Não engulo sua tentativa de ataque pelos flan­cos: para mim vocês estavam tentando fugir por outros lados.
— Como ousa? — bradou o mascarado, desferindo um potente tapa no ros­to de Lucano.
— Covardes foram e covardes continuam até hoje, ao assassinar inocen­tes indiscriminadamente.
Com a direita e com a esquerda, o terrorista estapeou Lucano por cerca de quinze segundos.
— Covardes são vocês! Covardes são os cesalpinos! Você é o covarde aqui!
O mascarado largou o enfraquecido Lucano, aparentemente recobrando o equilíbrio.
— Você está um bagaço, Lucano da Cesalpínia — disse, cinicamente. — Está mesmo doente. Talvez você morra a qualquer momento de hemorragia inter­na. Úlcera não é brincadeira — e riu. — Ei, não cuspa sangue no sofá: o terrorismo não é uma atividade muito rentável. Se estivesse em condições o que você faria comigo? Diga-me, Luc.
Ante o silêncio do arfante interlocutor, que se recusava a gemer ou gritar, o mascarado prosseguiu:
— Você está com uma vontade irreprimível de matar-me, não? Mas... e seu adestramento, de nada valeu? Você mataria, Lucano? Diga-me! Mataria? — gritou.
— Não — balbuciou Lucano, com a língua mergulhada em sangue. — Nor­malmente não mataria. Mas... mas matar você seria um grande bem que faria ao... mundo.
— Então todo o condicionamento, toda a energia desperdiçada pelos go­vernos brasileiro e cesalpino em seu treinamento, em sua transformação em autômato, tudo isso foi em vão?
— Nunca fui autômato. Se fosse, não teria procurado Nei. Teria... te­ria continuado quieto. Não estaria passando por esta... esta absurda... si­tuação.
— Quer dizer que há um oásis de emoção em seu vasto deserto de bom senso?
— Bom senso não prescinde de emoção.
— Que me dizes de Alcmene? Gostas dela?
— É uma amiga.
— Quão amiga ela é? Você gostaria que ela fosse mais que uma amiga?
— Deixe-me... deixe-me morrer em paz.
— Que eu saiba as escolas para conectores não recorrem a tratamentos mais radicais contra os impulsos humanos. No seu caso nem precisariam das mais tênues instruções a respeito da inconveniência de relacionamentos mais íntimos entre conectores e nativos brasileiros. Pois, se você violou as re­gras ao compartilhar um segredo de estado com o gordinho, por que não violá-las em outras áreas? O que o deteve?
— Não poderia... não poderia ter nada mais sério se minha vida... mi­nha vida é vasculhada dia e noite... se cada passo é vigiado... se não sei o que será do... do meu futuro...
— Se todos esses empecilhos não existissem, qual seria sua atitude em relação a Alcmene? Ou melhor, em relação a qualquer mulher.
— Não sei o que faria... Nem cogito sobre improbabilidades... Ou pro­babilidades... Não sei... e mesmo se soubesse não diria a você.
— As entrelinhas já disseram tudo — gargalhou o mascarado. — Então, definitivamente, você não é um homem completamente dominado pela razão. Con­fessou que poderia matar-me; não sabe o que faria em relação a uma mulher de quem gosta se não fossem determinadas circunstâncias, enquanto o bom conec­tor diria: “Tenho uma missão a cumprir, uma missão colocada acima de meus desejos pessoais”; e tentou aproximar-se dos conspiradores liderados por Pietro. Você não está totalmente perdido. É digno de ser chamado de homem. Com uns vinte anos de convivência, poderia passar-se por um terrogumense. Posso levá-lo a um hospital, Lucano. Basta que aceite juntar-se a nós.
— Prefiro mil mortes... mil mortes mais dolorosas... do que esta.
— E se eu disser que inventei toda essa história de Terrogum? Que não somos os Amici Libertatis? Que eu sou Pietro disfarçado? Que estava fazendo um teste com você?
— Eu... eu já não duvido... nem confio... nem desconfio de nada... De nada. Eu vim para me juntar a Pietro e aos outros. Mas... mas você me espan­cou. Pietro me espancaria?... Já não sei... Peço então que... retire a más­cara.
— Não. Você já disse tudo que eu queria ouvir. Não preciso mais de você. E como já disse: Pietro não existe mais.
Coberto do sangue que lhe saía da boca, com as roupas ensopadas, o ab­dômen como que aberto por um bando de aves de rapina, uma crescente dor de cabeça, as costas e o pescoço sentindo os efeitos da agressões que sofrera, a vista turva, a respiração entrecortada e difícil, Lucano ainda fez com que o mascarado ouvisse:
— Será que... não tenho direito... pelo menos o direito... à verdade?
E desmaiou. E desta vez não teria o consolo de passar um tempo no país dos sonhos. Ou de Sonho.

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