quinta-feira, setembro 27, 2007

DICA DE LIVRO: A INVENÇÃO DE MOREL


O escritor argentino Adolfo Bioy Casares foi muito mais do que o grande amigo do mito e compatriota Jorge Luis Borges, com quem escreveu o delicioso Seis problemas para Dom Isidro Parodi. Bioy mostrou toda a sua maestria em A Invenção de Morel, escrito durante a Segunda Grande Guerra.
A obra não pode ser reduzida ao rótulo de realismo fantástico, modalidade que grassa com mais desenvoltura pela América Latina. Seu livro é muitas vezes chamado de policialesco, mas, como diz o grande crítico Otto Maria Carpeaux, no posfácio da obra, A Invenção de Morel é ficção científica. E de primeiríssimo time.
Para quem gosta de Jornada nas Estrelas (Star Trek), a leitura do livro de Bioy pode apresentar uma surpresa: a antecipação dos holodecks, as salas de recreação do futuro (pelo menos na série), em que ambientes e pessoas são recriados com extrema fidelidade - ao ponto de ter havido episódios em que seres de carne e osso apaixonaram-se por hologramas. Os holodecks, ao contrário do que pensa a maioria dos fãs normais de Star Trek, surgiram pela primeira vez no desenho animado da série (1973). Eles foram popularizados pela Nova Geração (1987-1994) e utilizados ad nauseam em Deep Space Nine e Voyager.
Mas o assunto é A Invenção de Morel. E ninguém mais apropriado para apresentar o livro que Jorge Luis Borges, que escreveu o prefácio abaixo:
Por volta de 1882, Stevenson anotou que os leitores britânicos tinham certo desdém pelas peripécias e julgavam hábil escrever um romance sem argumento ou de argumento infinitesimal, atrofiado. José Ortega y Gasset - A desumanização da arte , 1925 - trata de justificar o desdém anotado por Stevenson e estabelece, à página 96, que "hoje em dia, dificilmente será possível inventar uma aventura capaz de interessar a nossa sensibilidade superior" e, à 97, que essa invenção "é praticamente impossível". Em outras páginas, em quase todas as outras páginas, advoga o romance "psicológico" e opina que o prazer das aventuras é inexistente ou pueril. Tal é, sem dúvida, o parecer comum em 1882, em 1925 e ainda em 1940. Alguns escritores (entre os quais tenho o prazer de contar Adolfo Bioy Casares) julgam razoável dissentir. Resumirei aqui os motivos dessa dissidência.
O primeiro (cujo ar de paradoxo não quero destacar nem atenuar) é o intrínseco rigor do romance de peripécias. O romance costumeiro, "psicológico", tende a ser informe. Os russos e os discípulos dos russos demonstraram até o fastio que ninguem é impossível: suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram a ponto de se separarem para sempre, delatores por fervor ou por humildade... Essa liberdade plena acaba por equivaler à plena desordem. Por outro lado, o romance "psicológico" também se pretende romance "realista": prefere que esqueçamos seu caráter de artifício verbal e faz de toda vã precisão (ou de toda lânguida vagueza) um novo toque verossímil. Há páginas, há capítulos de Marcel Proust que são inaceitáveis como invenções, aos quais, sem sabê-lo, nos resignamos como ao insípido e ocioso de cada dia. O romance de aventura, ao contrário, não se apresenta como transcrição da realidade: é um objeto artificial que não admite nenhuma parte injustificada. O temor de incorrer na mera variedade sucessiva do Asno de ouro , das sete viagens de Sinbad ou do Quixote impõe-lhe um rigoroso argumento.

Aleguei um motivo de ordem intelectual; há outros de caráter empírico. Todos tristemente murmuram que nosso século não é capaz de tecer tramas interessantes; ninguém se atreveu a verificar que, se alguma primazia tem este século sobre os anteriores, essa primazia é a das tramas. Stevenson é mais passional, mais diverso, mais lúcido, talvez mais digno de nossa absoluta amizade que Chesterton; mas os argumentos que conduz são inferiores. De Quincey, em noites de minucioso terror, mergulhou no coração de labirintos, mas não cunhou suas impressões de unutterable and self-repeating infinities em fábulas comparáveis às de Kafka. Anota com justiça Ortega y Gasset que a "psicologia" de Balzac não nos satisfaz; o mesmo cabe anotar de seus argumentos. A Shakespeare, a Cervantes agrada a antinômica idéia de uma moça que, sem perder a formosura, consegue passar por homem; esse móvel não funciona para nós... Julgo-me livre de toda superstição de modernidade, de qualquer ilusão de que ontem difere intimamente de hoje ou diferirá de amanhã; mas considero que nenhuma outra época possui romances de tão admirável argumento como The Turn of the Screw, como Der Prozess, como The Invisible Man, como Le Voyageur sur la Terre, como este que logrou escrever, em Buenos Aires, Adolfo Bioy Casares.
As ficções de índole policial - outro gênero típico deste século que não é capaz de inventar argumentos - relatam fatos misteriosos que um fato razoável logo justifica e ilustra; nestas páginas, Adolfo Bioy Casares resolve com felicidade um problema talvez mais difícil. Desfralda uma odisséia de prodígios que não parecem admitir outra chave exceto a alucinação ou o símbolo, e plenamente os decifra mediante um único postulado fantástico, mas não sobrenatural. O temor de incorrer em prematuras ou parciais revelações me proíbe o exame do argumento e das muitas delicadas sabedorias da execução. Basta declarar que Bioy renova literariamente um conceito que Santo Agostinho e Orígenes refutaram, que Louis-Auguste Blanqui meditou e que disse, com música memorável, Dante Gabriel Rossetti:

I have been here before, But when or how I cannot tell: I know the grass beyond the door, The sweet keen smell, The sighing sound, the lights around the shore...
*

Em espanhol, são infreqüentes e mesmo raríssimas as obras de imaginação meditada. Os clássicos exerceram a alegoria, os exageros da sátira e, por vezes, a mera incoerência verbal; de data recente, não recordo nada senão algum conto de As forças estranhas e algum outro de Santiago Dabove, esquecido com injustiça. A invenção de Morel (cujo título alude filialmente a outro inventor ilhéu, Moreau) transporta para nossas terras e para nosso idioma um gênero novo.

Discuti com o autor os pormenores da trama e a reli; não me parece uma imprecisão ou uma hipérbole qualificá-la de perfeita.

Buenos Aires, 2 de novembro de 1940
* Estive antes aqui, / Mas quando e como não sei: / Conheço a relva além da porta, / O perfume doce e penetrante, / As luzes pela costa, os sons murmurantes... [N.T.]

Nenhum comentário:

Postar um comentário