quarta-feira, setembro 12, 2007

TRECHO DE "A CONFRARIA DOS HOMENS DE BEM"

Na véspera da reunião da Confraria, Abel foi com seus agora subordina­dos ao Le Boutècque. Dizia que reservava pelo menos um dia por semana aos amigos pobres. “Para não perder de todo minha humanidade”, brincava. À mesa do bar, naquela noite recebeu a inesperada abordagem de sua irmã, Ione. Séria, sem olhar para os acompanhantes do irmão, disse-lhe ao ouvido:
— Mamãe está um pouco adoentada. Não sei por quê, mas ela sente sua falta. Você bem que podia dar uma pequena alegria para ela, para variar.
A resposta foi um leve aceno vertical de cabeça.
— Quem era aquela? — perguntou Cepukas.
— Minha irmã. Gostou? Leva para você. Tanto lugar para ela ir, tinha que vir com o retardado do namorado dela justo aqui.
— Você é daqueles que detestam parentes, não? — disse Paula Chagas.
— Longe de mim. Não detesto. Evito. O bom parente não liga, não visi­ta, não se hospeda em sua casa. Não pede emprestado. Empresta. Como não existe o bom parente, melhor evitar essa raça.
— Cadê o poema que você prometeu, Abel? — cobrou Febo Lício.
— Ah, sim, aqui está. Queria que vocês fizessem algo bem paulinho-da-viólico com ele, certo? Diz assim

Apesar de tê-lo visto
A tosar o pêlo liso,
Escrever no barro frio,
Descrever o paraíso,
São águas do mesmo rio
Bonaparte a conquistar,
Tornar arte o matar,
Fenecer no desvario.
Adormecido Ele se agita.
À dor, vencido, se entrega
Convencido de Seu erro,
Ou vencido, Ele não nega.
Só a cadência da eternidade,
Sem decadência, sem apogeu,
Dissipará o poder que cega
E se fará de Deus... um ateu


Os circunstantes entreolharam-se e aplaudiram. Pôde-se perceber um en­tusiasmo maior entre os funcionários da Proeza.
— E então, especialistas, o que acharam?
— É uma coisa bonita — disse Orfeu Dioniso.
— Lá vem o “mas” — apostou Abel.
— Sem “mas”. É um bom poema. Disse “poema”. Seu hermetismo, no entanto, dificulta sua transformação em letra de música.
— Hermetismo? — questionou Abel. — O que há de hermético nele? Alguém aqui não o entendeu? Se há um Deus, ele deve ser uma criatura amargu­rada, orgulhosa das realizações de sua grande criação, mas também envergo­nhada pelas barbaridades humanas. “Por quê?”, Ele se pergunta. Talvez dis­sesse até “por que tanta injustiça, meu Deus?” Um absurdo, não é? Mas é nes­se momento que Ele questiona a si próprio, que duvida. Nem que seja por uma fração de segundo por essa eternidade toda, Deus terá sido ateu, se não o tornar-se definitivamente. O título da obra é A Luz. Enfim veio a luz e Ele viu a verdade.
— Não tenho vergonha de confessar que eu não tinha entendido o poema — admitiu Ênio Saito. — Agora ficou ainda mais belo para mim.
— Viu como é uma letra difícil, Abel? — afirmou Lício. — Sabe o que o grande público entenderá? Só vai entender o finalzinho, esse negócio de que Deus vai virar ateu. E isso vai revoltar muita gente.
— O homem detesta aqueles que derrubam suas ilusões — disse Abel.
Saito anotou.
— Você tem talento — asseverou Dioniso. — Por que, para começar sua carreira de compositor, você não experimenta criar algo mais simples, mais palatável? Depois dos primeiros sucessos, que venha A Luz.
— Algo mais musicável também — arriscou Paula Chagas.
— Vou pensar, vou pensar — disse Abel, ligeiramente contrariado.

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