Na véspera da reunião da Confraria, Abel foi com seus agora subordinados ao Le Boutècque. Dizia que reservava pelo menos um dia por semana aos amigos pobres. “Para não perder de todo minha humanidade”, brincava. À mesa do bar, naquela noite recebeu a inesperada abordagem de sua irmã, Ione. Séria, sem olhar para os acompanhantes do irmão, disse-lhe ao ouvido:
— Mamãe está um pouco adoentada. Não sei por quê, mas ela sente sua falta. Você bem que podia dar uma pequena alegria para ela, para variar.
A resposta foi um leve aceno vertical de cabeça.
— Quem era aquela? — perguntou Cepukas.
— Minha irmã. Gostou? Leva para você. Tanto lugar para ela ir, tinha que vir com o retardado do namorado dela justo aqui.
— Você é daqueles que detestam parentes, não? — disse Paula Chagas.
— Longe de mim. Não detesto. Evito. O bom parente não liga, não visita, não se hospeda em sua casa. Não pede emprestado. Empresta. Como não existe o bom parente, melhor evitar essa raça.
— Cadê o poema que você prometeu, Abel? — cobrou Febo Lício.
— Ah, sim, aqui está. Queria que vocês fizessem algo bem paulinho-da-viólico com ele, certo? Diz assim
Apesar de tê-lo visto
A tosar o pêlo liso,
Escrever no barro frio,
Descrever o paraíso,
São águas do mesmo rio
Bonaparte a conquistar,
Tornar arte o matar,
Fenecer no desvario.
Adormecido Ele se agita.
À dor, vencido, se entrega
Convencido de Seu erro,
Ou vencido, Ele não nega.
Só a cadência da eternidade,
Sem decadência, sem apogeu,
Dissipará o poder que cega
E se fará de Deus... um ateu
Os circunstantes entreolharam-se e aplaudiram. Pôde-se perceber um entusiasmo maior entre os funcionários da Proeza.
— E então, especialistas, o que acharam?
— É uma coisa bonita — disse Orfeu Dioniso.
— Lá vem o “mas” — apostou Abel.
— Sem “mas”. É um bom poema. Disse “poema”. Seu hermetismo, no entanto, dificulta sua transformação em letra de música.
— Hermetismo? — questionou Abel. — O que há de hermético nele? Alguém aqui não o entendeu? Se há um Deus, ele deve ser uma criatura amargurada, orgulhosa das realizações de sua grande criação, mas também envergonhada pelas barbaridades humanas. “Por quê?”, Ele se pergunta. Talvez dissesse até “por que tanta injustiça, meu Deus?” Um absurdo, não é? Mas é nesse momento que Ele questiona a si próprio, que duvida. Nem que seja por uma fração de segundo por essa eternidade toda, Deus terá sido ateu, se não o tornar-se definitivamente. O título da obra é A Luz. Enfim veio a luz e Ele viu a verdade.
— Não tenho vergonha de confessar que eu não tinha entendido o poema — admitiu Ênio Saito. — Agora ficou ainda mais belo para mim.
— Viu como é uma letra difícil, Abel? — afirmou Lício. — Sabe o que o grande público entenderá? Só vai entender o finalzinho, esse negócio de que Deus vai virar ateu. E isso vai revoltar muita gente.
— O homem detesta aqueles que derrubam suas ilusões — disse Abel.
Saito anotou.
— Você tem talento — asseverou Dioniso. — Por que, para começar sua carreira de compositor, você não experimenta criar algo mais simples, mais palatável? Depois dos primeiros sucessos, que venha A Luz.
— Algo mais musicável também — arriscou Paula Chagas.
— Vou pensar, vou pensar — disse Abel, ligeiramente contrariado.
quarta-feira, setembro 12, 2007
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