quinta-feira, novembro 22, 2007

UM TRECHO DO LIVRO "CESALPÍNIA"

Wilson Peres foi a primeira pessoa que Lucano viu ao abrir os olhos. Estava na enfermaria da Polícia Federal.
— Que pena, rapaz. Eu devia ter chegado antes. Aqueles bárbaros...
— O quê?... — Lucano tinha dificuldades para falar. Sentia o gosto de sangue na boca. — Parece... anestesia... de dentista.
— Fica calmo. Você levou cinco minutos de surra. Só isso. Agora descanse. Logo, logo a gente conversa.
Depois de ser entupido com analgésicos — sofrera fraturas no rosto, perdera alguns dentes e teve hemorragia interna —, Lucano dormiu mais algumas horas. Mais tarde, tendo recobrado plenamente a consciência, pediu explicações a Peres.
— Bem de manhãzinha eles receberam um telefonema. Um homem, forçando a voz pra disfarçar, disse, textualmente... Deixa eu ver... Tenho anotado aqui — procurou nos bolsos do paletó. — Achei. Escuta: “O espírito de Wolfe Tone está forte entre nós; o espírito hiberniano agora grassa entre nós. Portão dezoito, Maracanã. Que ninguém esteja lá quando nosso cartão explodir. Libertem-nos e paramos com isso”. Disse isto e desligou. Avisaram os altos escalões. O ministro da Justiça foi um dos primeiros a saber. Logo a Figura me ligou. Disse que tinha mandado os federais pegar você, colocá-lo em custódia. Me mandou vir para cá. Foi para te proteger, compreende?
— Então acham... que eu... eu tenho algo a v... ver com tudo isso?
— Só precaução, entende? A Figura decifrou a mensagem...
— Sei, sei... Hibernia é... é o nome latino... da Irlanda. Wolfe Tone... fundou uma sociedade... os Irlandeses Unidos... Foi no século dezoito... Eles... eles queriam autonomia... libertar-se da Inglaterra.
— Lucano, você...
— Sei que me... me incrimino por saber... essas coisas. Mas você... você sabe muito bem que... que não tenho... nada com isso. A Figura... a Figura decifrou a mensagem... Como eu represento um... um país sem
autonomia... logicamente sou um suspeito... Há lógica aí... Mas sou inocente... Você sabe disso... A Figura sabe.
— Mas esses... esses gorilas não. Julgaram você suspeito e partiram para a ignorância. São uns covardes. Olha o que fizeram com você.
— Devo estar... uma graça, não? Diga-me, Wilson... Não vou poder... participar mais... daquele concurso de... de beleza, não é?
— Como você ainda tem forças para brincar? Olha, Lucano, você vai passar a noite aqui. Mas não se preocupe: o Berger e o Moraes estão vigiando a porta. Amanhã cedo virão o Ari e o Negri. Então você vai ser levado para sofrer uma operação de correção facial. Te vejo amanhã.
À noite um enfermeiro mal-encarado ficou para cumprir as ordens do médico. Mais remédios, entre eles um sedativo. Mas no meio da madrugada Lucano despertou. Sua cabeça latejava. Tanto que não conseguia pensar. Era como se estivessem enfiando brocas com furadeira elétrica em sua testa e no topo da cabeça.
Sentiu vontade de vomitar, mas não tinha nada no estômago. Seu alimento desde que ali chegara era o soro. Subitamente, ouviu uma voz. Numa maca encostada à parede do ambulatório alguém balbuciava palavras entrecortadas por gemidos. Estava escuro. Lucano tentava concentrar-se no que o homem dizia. Decidiu ir até ele.
Sentiu uma dor lancinante no estômago ao sentar-se em sua estreita cama. Ficou sentado por algum tempo de olhos fechados. Ao ouvir o homem dizer, agora claramente, a palavra liberdade, abriu os olhos e, ignorando as dores, levantou-se. Cambaleando, apoiando-se nas outras camas, guiando-se pelo tato, colocou-se ao lado de seu companheiro de infortúnio.
— Meu amigo — disse Lucano, que, na penumbra do ambiente, por mais que se esforçasse não conseguia ver o rosto do homem. — Também pegaram você... por causa das bombas?
— Quem é você?
— Eu... eu sou... um suspeito, eu acho — Lucano gemia enquanto falava; levava as mãos à cabeça, ao estômago e se perguntava se estava dormindo. — E você?
— Um delegado disse que eu tinha colocado a bomba no Maracanã e me deu um chute. Chutou bem no... no meio das pernas. Depois de uns tabefes, me colocaram no pau de arara — sua fala era convulsiva, um tanto quanto alucinada.
— E você colocou... a bomba no... no Maracanã? Eu não fui... E o Wilson sabe que... não fui eu. A Figura também.
— A Figura? Você conhece a Figura? Eu queria conhecer a Figura.
— Não conheço a Figura. Ei... Mas como você... sabe da Figura? É segredo — Lucano falava sem pensar. Gemia e falava.
— Então você também não conhece a Figura. Ninguém conhece a Figura. Só o Styles que fala com o homem. Só ele conhece a Figura.
— St... Styles? Nunca ouvi falar... O Wilson... conhece a Figura.
— O Styles é a única pessoa que conhece meu segredo. Mas se você contar o seu, eu conto o meu.
— Conta o seu primeiro... que eu... eu estou... Sabe quando o dentista anestesia sua boca?
— Tá bem, tá bem. Eu venho de um lugar...
— Dá para falar... mais devagar? Minha cabeça dói mais... quando você fala rápido. Você é... da Cesal... Cesalpínia?
— Cisalpina?
— Cesalpínia.
— Nunca ouvi falar, amigo. Venho do norte. Meu país é uma imensa clareira na floresta amazônica. Oficialmente área desmatada, queimada, inutilizada. Também local de exploração e extração de cassiterita. Sabe os espanhóis e ingleses que entraram pela foz do Amazonas? Pois foram eles que abriram a rota que nós usamos depois.
— Meu amigo, eu estou dormindo?
— Está bem acordado, como eu. Se bem que você está bem mais derrubado. Você está quase caindo. Senta aí nesse banquinho. Isso.
— Você é da Hibernia?
— Então você sabe da mensagem dos terroristas. Styles me falou dela. Não, não. Meu país chama-se Candirúnia. Não gosto do nome, não gosto. Por causa do peixe que o inspirou, o candiru. Um peixinho, um minibagre de três centímetros que dá no mar mas entra pelo Amazonas de vez em quando. Se você nadar pelado em água com candiru, indubitavelmente o peixe nojento vai querer conhecer seus mais profundos recônditos. Disgusting. O pessoal que chegou lá sentiu na carne a abundância do kani’ru, como dizem os tupis.
— Seu nome... Qual é o seu nome?
— Charlton. Raul Charlton. E o seu?
— Lucano. Prazer.
— Prazer. Nossa sociedade é multicultural, mas há uma competição entre as nacionalidades, ou entre o que sobrou das nacionalidades fundadoras da Candirúnia. Sabe por que o Brasil nos mantém escondido?
— Inveja?
— Não. Quer dizer, talvez também por inveja. Mas primordialmente devido às nossas constantes experiências no sentido de encontrar a melhor forma de governo. Não temos esse conformismo doentio, essa imobilidade morrinha dos brasileiros, dos americanos com seu bipartidarismo, do ser humano em geral. No começo era tudo misturado: espanhóis, ingleses, negros, portugueses, índios, holandeses e franceses. Mas aí o rei Mbuto, que era filho de um rei africano trazido para ser escravo no Pará, nos deu a sábia sugestão — Mbuto era uma espécie de líder dos negros; ele fugiu do cativeiro paraense e foi para a Candirúnia...
— Certo... Prossiga.
— Bem, Mbuto sugeriu que nos dividíssemos por afinidade e que cada uma das províncias — a Candirúnia seria dividida em províncias — adotasse um sistema de governo. Ninguém podia imitar o outro, entende? Alguns anos depois o melhor sistema seria então adotado por todo o território. Sabe o que isto significa?
— Acho que sei... Mas... pensar dói... Portanto...
— Certo, certo. Acabamos com o monopólio do poder. Por que ficar sob um só tipo de governo e sob um só governo. Esta foi a primeira etapa. Uns dez anos depois, representantes das províncias, após muitas discussões, apresentação e dados, definiram que o sistema semiparlamentarista da província dos holandeses era o melhor. Por um tempo todos o adotaram. Mas não conseguimos ficar naquela monotonia por muito tempo. Então resolvemos repetir a experiência.
— Minha cabeça... está girando.
— Estou falando depressa de novo, não é? Vou devagar... Um escocês recém-chegado veio com a novidade. Era o ano de mil setecentos e sei lá o quê. Disse que era preciso acabar com a imaterialidade do estado. O estado deífico, meio etéreo, significa distanciamento do povo, favorece os abusos de poder, a corrupção, a irresponsabilidade. Esse sujeito, Patrick Shilton, aventou a possibilidade de entregarmos o governo a um grupo de pessoas capazes. Pagaríamos essas pessoas para que nos governassem. Seria seu trabalho, enquanto nos preocuparíamos com nossa vida.
— Mas não é... o que acontece... normalmente? Pagam-se impostos... e daí os salários aos... governantes e funcionários públicos.
— Mas Shilton queria que as empresas competissem: cada uma foi para uma província para mostrar serviço. Por exemplo, na província de Hispânia a empresa tinha um contrato de quatro anos. Nesse período devia cumprir as cláusulas do contrato. Se não o cumprisse, o contrato não seria renovado.
— Literalmente... um contrato social. Mas de qualquer forma... havia um estado... Pois quem decidia não... renovar com a empresa?
— O povo, oras. Cópias do contrato eram (e são) distribuídas à população. Cada um dá seu veredicto. O povo elege os contadores de “sins” e “nãos”, que divulgam o resultado.
Lucano gemeu e perguntou:
— E a justiça?... É privada também?
— Hoje em dia há juízes eleitos pelo povo. Mas continuamos a fazer experiências. Mas o sistema de estado privado vingou, sabe? As diferenças entre as províncias são sutis hoje em dia. No dia em que acabarem as diferenças então teremos encontrado o estado ideal. Como é chato este Brasil gigantesco vivendo só com um sistema de governo, imutável e incompetente.
— O estado hiperativo.
— Hã?
— A Candirúnia... O regime de vocês... O estado hiperativo... Como você.
— O estado hiperativo. Gostei. Melhor que esse modelo de estado modorrento de vocês ocidentais. Mas nós gostamos de falar em Estados Privados da Candirúnia. Pomposo, não? É um apelido do nosso país. Lá tudo é feito na base do profissionalismo. São profissionais na iniciativa privada e no governo. Aqui é o contrário: amadores no estado e no empresariado. E todos querendo tomar o dinheiro do contribuinte paradão. Como esse povo aceita tudo passivamente, Lucano? Tudo quanto é obra e empreendimento o empresário tem que reservar algum para um deputado, para um burocrata. Falseiam-se as faturas e quem paga a conta é o imbecil chamado povo. É por isso que o estado não quer deixar de interferir na economia. Quanto mais intervenção mais possibilidades de ganho para os donos do estado, Lucano. E o povo que é o estado. E o povo enquanto estado deveria cuidar de si mesmo. Mas o povo é o sujeito que não liga para a feridinha que está se transformando em câncer. O estado é uma perene metástase. O estado é um osso que os insaciáveis cães da elite jamais largarão por vontade própria.
— Se não me... engano... você falava sozinho... Falou em... em liberdade.
— Sabe como é, né? Essa prisão arbitrária, essa violência toda... De repente bateu uma vontade de escancarar tudo. De reivindicar liberdade para meu povo. Eu, particularmente, não explodiria bombas. Prezo muito a vida humana para ficar colocando uma ou várias em risco, entende? Eu estava meio transtornado e nem via que estava pensando alto. Acho que é isso.
— O Brasil também... esconde seu país?
— Você disse também? Quer dizer que você... Então esse é seu segredo. Por isso você também é suspeito.
— Sim... Agora... responda... por favor.
— Ah, claro, claro. Eles nunca disseram claramente o porquê. Mas todos nós candirunianos sabemos que o governo brasileiro, e antes da independência o português, temia que se espalhasse por este imenso território as idéias de experimentação, de tentativa e erro na busca de um sistema ideal de governo. O que sempre importou para os poderosos deste mundo, Lucano, é manter a forma clássica de dominação, de opressão dos menos favorecidos. O que vem acontecendo há tempos imemoriais é a evolução de uma única maneira de governar, que significa o aperfeiçoamento dos meios de exclusão da maioria do processo sócio-político-econômico no que tange à área decisório-funcional em favor de uma casta, de uma minoria que vem sempre gozando dos mesmos privilégios. O poder é para poucos, meu combalido amigo. Se podemos segurá-lo em nossas mãos, para que dividi-lo? Foi por isso que o Brasil baixou o pano entre nós e o mundo. Mas chega de falar de mim e de meu país. Agora quero saber tudo sobre o lugar de onde você veio, sobre o motivo que levou o Brasil a escondê-lo e se você teria coragem de iniciar um movimento pela libertação de seu povo.

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