quarta-feira, maio 23, 2007

TRECHO DE "O AMIGO DE PRAGA"

Dez dias depois de enviar uma resposta à sua avó, Dennis recebeu outra carta postada em Alto Paraíso. No envelope, por fora, estava escrito que a remetente era Matilde Campelo, mas constatou-se, depois de aberto o lacre, que quem assinava a carta era, para júbilo do destinatário, Etê. Emocionado, Dennis pôs-se a percorrer as linhas enfeitadas com uma letra firme e elegante, pequena, mas completamente legível.

"Salve, Dennis, grande amigo, virtual irmão,

"É com imenso prazer e inenarrável alegria que informo que foi assinada minha carta de alforria. Partiu ontem para destino incerto o tenente René Amarante. Segundo Prudente, o militar disse que a Aeronáutica estava literalmente esquecendo o caso, que iria adotar uma postura passiva, ou seja, de esperar pelos acontecimentos. Ótimo para mim, que pude ficar por mais que alguns minutos debaixo do Sol; que pude admirar sem receio as belezas da fazenda; que poderei conhecer novas pessoas.
"Prudente disse-me que revelou a Juraci que era eu quem estava no aparelho acidentado. Não sei bem a razão, mas foi depois desse fato que Juraci passou a, digamos, evitar uma maior aproximação. Seu avô também instruiu-me a adotar a identidade de um jogador tcheco de vôlei. Decidi considerar-me um meio-de-rede, devido à minha avantajada altura. Pode notar que andei acompanhando eventos esportivos pela televisão.
"Porém, algumas coisas vêm me intrigando, caro Dennis. Minha mente é como que uma caçarola com uma água que nunca cessa de ferver, dominada que é por um batalhão de dúvidas. Quanto maior o volume de informações, mais indagações surgem. O saber só quer saber de saber mais.
"Aqui vão alguns exemplos de minhas correntes inquietações:
1) Havia mesmo a imperiosa necessidade de esconder-me das autoridades? Teoricamente não há ninguém mais habilitado que elas para descobrir quem eu sou. Se eu for um piloto de testes da Força Aérea Brasileira, pronto: estava desfeita a confusão. Se eu estivesse em missão para um país estrangeiro, as autoridades brasileiras providenciariam minha repatriação. Apresentei estas questões a Prudente. Ele tergiversou, hesitou e disse, sem convicção, que temia que a Aeronáutica dispensasse a mim um tratamento inadequado. Foi o que ele disse, embora com outras palavras. Com muitas outras palavras, aliás. Matilde disse que eles iriam encher-me de perguntas, às quais eu não poderia responder devido ao meu lastimável estado. Disse ainda que iriam drogar-me e enfiar-me num quarto de hospital com grades. Mas por que fariam uma coisa dessas? Por ter eu sofrido um acidente? Pelo que tenho lido, as vítimas de sinistros são tratadas com uma certa complacência, são cercadas de cuidado e atenção. Pedi a Prudente que me leve ao local da queda qualquer dia desses, agora que estamos livres de Renê. Ele limitou-se a perguntar 'pra quê, se não tem mais nada no local, se limparam a área?' Pedi que ao menos me ensinasse a direção, pois, como já lhe disse, a primeira coisa de que me lembro não é do aparelho acidentado, nem de como deixei o lugar. Ele ficou de pensar no assunto.
2) Por que não ir à imprensa? Com a minha foto estampada nos jornais, nas revistas, na TV e em cartazes provavelmente ela seria vista por alguém que me conheceu durante o 'inverno da campanha de minha vida'. Prudente replicou com a óbvia resposta de que a Aeronáutica também tomaria conhecimento das fotos e então voltaríamos à primeira dúvida. Mas eu devo ter parentes como todo mundo, ou não? Matilde afirmou que, com certeza, minha memória voltará. Dessa forma eu mesmo procurarei minha família. Mas qual o estado emocional desses supostos parentes, que não sabem se estou vivo ou morto? Não teria sido melhor permanecer mudo e naquele estado de confusão mental do que ter consciência suficiente para atentar a tais interrogações?
3) Sou só no mundo ou há outros como eu? Cada dia que passa essa pergunta toma mais conta dos meus pensamentos. Pois os dias vêm e vão e não consigo encontrar, nos livros ou na vida real, algo — ou alguém — que me seja similar, psíquica e fisiologicamente falando. Esta manhã mesmo eu resolvi ajudar Prudente e os rapazes com o leite que todos os dias eles levam para a cidade. Sozinho colocava com tranqüilidade dois galões cheios na caminhonete. Todos se espantaram, pois muitas vezes eram necessários dois homens para carregar um galão. Prudente disse a eles que eu era atleta. Foi então que um deles declarou que conhecia jogador de futebol que não era capaz de arrancar a rolha de uma garrafa. Uma hora mais tarde eu brincava com o cachorro dos garotos de Juraci. Jogava bem longe um pedaço de madeira e o alcançava antes que o próprio animal o fizesse. Isto tudo para pasmo dos 'expectadores'. Juninho me perguntou se era eu quem dera um 'pulão' na beira do córrego em determinada ocasião. Respondi que já pulei tanto que não me lembro de todos meus 'pulões' de forma individual.
"Os exemplos acima expostos proporcionaram-me pelo menos uma conclusão. Uma, diga-se, dolorosa conclusão: vocês estão escondendo alguma coisa de mim. Um maior e não revelado aspecto da situação geral das coisas é a causa das respostas evasivas, insuficientes e proferidas em tom inseguro. Não sei exatamente o que escondem, apenas especulo. O fato é que pelo mundo afora não é corriqueiro encontrar pessoas como eu. Pelo que aprendi sobre a República Tcheca, por exemplo, os homens de lá não apresentam uma pele com a mesma textura da minha; eles não saltam até trinta metros partindo do chão; nem ficariam ilesos com a queda; não correm a cerca de noventa quilômetros por hora; não levantam um trator a um metro do chão. Como também aprendi que um tcheco, ou um europeu de modo geral, não difere cromossomicamente em nada de um africano ou de um asiático, que a pele é uma reles capa para proteger o corpo, não importa a cor; e que a igualdade entre os homens impera por baixo da pele, a conclusão a que cheguei é que não há muitos obstáculos que me impeçam de duvidar de minha humanidade.
"Pesquisei em livros e enciclopédias se existe uma doença que deixe uma pessoa no meu estado. Pelo contrário, descobri por intermédio de minhas leituras que um dos maiores anseios do homem é o poder. As pessoas nunca estão satisfeitas com sua força, seja ela física, moral, econômica ou política. Por isso buscam todos os meios de aumentá-la, mesmo que o processo venha a prejudicar a outrem. Esta a causa da infelicidade que grassa no mundo. A vida do homem parece ser um vasto deserto de infelicidade salpicado de poucos oásis de felicidade em alguns pontos. Logo, amigo Dennis, não sou portador de nenhuma moléstia crônica, a menos que seja o precursor de uma nova doença, não catalogada pela medicina. O que sou, então?
"Não levei estas conclusões aos seus avós. Sinto em seus olhos uma sincera e profunda boa vontade para comigo. Se vocês escondem alguma coisa, isto acontece porque vocês querem proteger-me. Não sei bem de quê. Nem quero falar de minhas cogitações, pois elas incluem hipóteses que vão do absurdo ao ridículo. Espero apenas que alguém me diga a verdade. Você, por exemplo. Será que se você me contar tudo o que sabe - ou o que acha que sabe - de alguma forma não estará me ajudando a recobrar meu passado? Ou vocês conhecem meu passado e ele é tão sujo, sórdido e condenável que merece permanecer enterrado?
"São tantas dúvidas que é melhor eu ficar por aqui. Não quero implodir sua cabeça também. Mas mantenha a calma. Prometo que ficarei aqui a aguardá-lo, que não cometerei nenhuma loucura. Excetuando-se meu inferno interior, o inferno das questões indecifráveis, estou no paraíso. Adoro este lugar e sua gente. Prometo que o espero para julho. Palavra de honra, palavra de um cavaleiro tão magro e cabeçudo como o galante Dom Quixote de la Mancha. E você, como eu, deve ter lido que as palavras de um cavaleiro são mais sólidas que toda a solidez somada de todas as rochas do mundo.
"Um abraço, não muito forte, de seu pálido amigo

Ernst Etevaldo Tchapek"

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