quinta-feira, junho 07, 2007

A VOLTA DOS CONTOS DIALÉTICOS (NÃO QUE ALGUÉM ESTIVESSE COM SAUDADE DELES...)



Irredutibilidade

- Posso entrar, chefe?
- Claro. O que aconteceu?
- É... Temos... hã... um probleminha...
- Deve ser um problemão, já que é raro você todos entrarem juntos na minha sala.
- Lembra que hoje cedo nós demos aquela notícia que o senhor nos passou?
- Da morte do Helvécio Marlos?
- Isso.
- Qual é o problema? Falaram mais alguma coisa? Não foi acidente? Há alguma possibilidade de assassinato?
- Não é bem isso...
- Falem, então, criaturas!
- Ele ligou agora há pouco.
- Ele quem? O assassino?
- Não houve crime nenhum.
- Então quem ligou?
- O Helvécio.
- Rar-rar-rá. Olha como estou rindo. Que piada “engraçada”, pessoal. Agora, por favor, saiam que eu tenho muito trabalho a fazer. E você, João, não devia estar no ar neste momento?
- Eu coloquei umas músicas pra rodar. O Helvécio quer desmentir a notícia no ar. A gente veio perguntar como a gente deve fazer o desmentido. Ele quer que o senhor peça desculpas publicamente.
- Peraí, peraí! Então é sério mesmo? Aquele cantorzinho de merda não morreu?
- Não. A gente checou tudo e...
- Mas eu recebi a informação de alguém de dentro da casa dele, minha fonte mais segura... Porra! Me pregaram uma peça!...
- E agora, o que a gente faz, chefe?
- ...
- Chefe... Chefe!
- Ainda não acredito que me enganaram, aqueles filhos da... É o seguinte: não vamos desmentir porra nenhuma!
- Como é, chefe?
- É isso aí. Pra nós aquele bosta morreu, entendido?
- Mas, chefe, todo mundo vai rir de nós. Como é que vai ficar nossa...
- Foda-se o que vão falar de nós! E não quero que o nome daquela bicha seja mais citado por aqui! Nem que a música dele seja tocada! Vocês me entenderam?
- Mas das dez músicas mais pedidas pelos ouvintes seis são dele...
- Não interessa! Esse cara morreu pra nós!
- E se ele não tiver nada a ver com essa brincadeira?
- Não quero nem saber se teve ou não! Pra minha rádio ele não existe mais!
- O senhor está de cabeça quente. Ninguém gosta de ser feito de bobo e...
- Pois é! É isso! Ninguém me faz de palhaço! Assim esse povo aprende...
- E o que eu falo no ar?
- Nada. A gente segue nossa vida normalmente. Só que de agora em diante Helvécio Marlos não faz mais parte do nosso universo.
- Desculpe-me, o senhor é o patrão, mas isso não existe.
- Como não existe? Quem disse a famosa frase “Propriedade é roubo”?
- ...
- Todo mundo acha que foi Marx, não é?
- ...
- Você sabe quem foi, né, Pipeta? Não respondeu, mas eu sei que pelo menos você sabe.
- Sim, sei.
- Você sabe também que a maioria dos “letrados” acha que a frase é de Marx, não é?
- É...
- Mas foi Proudhon quem a proferiu. Hoje quem sabe quem foi Proudhon? Mas todo mundo conhece Marx e até acha que foi ele que, além de ter dito essa frase, também inventou o comunismo e o socialismo.
- E o que isso tem a ver com a “morte” do Helvécio?
- Tudo, João, tudo! Isso significa que a verdade dos fatos não interessa! No fim sobra a versão dos vencedores e dos poderosos. E nesta rádio eu sou Stálin!
- Tá bom, chefe. O Helvécio tá morto e enterrado.
- E se ele processar a emissora?
- E eu sou homem de ter medo de processo? Vou pra cadeia pro resto da vida, mas não ressuscito aquele projeto de artista!
- E quando os ouvintes pedirem músicas dele?
- Digam que ele só será tocado daqui a um ano, no primeiro aniversário de morte. E haverá homenagens a cada aniversário do falecimento do “grande artista”.
- Tá bom, chefe.
- “A ignorância jamais ajudou ninguém”.
- O que você disse, Pipeta?
- Nada. Quem disse foi Marx. E essa frase é dele mesmo.

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