quinta-feira, junho 14, 2007
TRECHO DO PROSCRITO "O PARTIDO DO INDIVÍDUO"
O livro que resolvi relegar às gavetas do esquecimento, O Partido do Indivíduo, foi escrito entre 1994 e 1995, mas muitas das polêmicas da época continuam atuais, prova de que o país tomou mesmo gosto por patinar sem sair do lugar, atolar, empacar... Dá só uma olhada.
— Nunca vi tanta carta num gabinete só, Laszlo — disse Eunice. — E telefonemas e mais telefonemas. Estou ficando louca.
— Acho que já fui longe demais nesse negócio de conter despesas, não? Você precisa de alguém para auxiliá-la.
— O ideal seriam dez. Sei como você é com o tal dinheiro público. Mas uma pessoa já ajudaria.
— Não vou aumentar as despesas do gabinete.
— Hã? Mas então...
— Vou dar parte de meu salário para essa outra pessoa que você vai indicar. Conhece alguém de confiança?
— Que loucura. Deixe-me ver... Ah, sim. Tem uma moça lá...
— Traga-a amanhã, por favor.
O livro realmente fez o movimento no gabinete de Laszlo avolumar-se. A maioria das pessoas ligava ou escrevia para elogiar, apoiar. Alguns faziam reparos, apontavam o que achavam ser disparates, inadequações. O “complô” estava sendo levado adiante. Várias emendas e projetos de lei, adotadas por parlamentares diversos já haviam entrado em tramitação. Evan Piet Stein formalizou a proposta que instituía o voto facultativo e a que acaba com o quociente eleitoral. Atacado por todos os lados, defendeu as emendas da tribuna:
— Alguns de vocês dizem que voto é dever e não direito. Quem são vocês para me dizer que tenho a obrigação de comparecer a uma seção eleitoral? Meus pais? Nem meus pais jamais foram tão autoritários. Como diz meu amigo Laszlo, o sujeito quando nasce não assina um contrato no qual estão discriminados seus deveres. E se eu quiser morrer como nasci, sem dever algum? Quem o estado pensa que é para obrigar-me a qualquer coisa? Eu voto se eu quiser. Aí vem outro dizendo que eu poderia votar em branco ou nulo, que não sou obrigado a escolher ninguém. Também não quero ser obrigado a votar em branco ou nulo. Que medo é esse da livre determinação das pessoas? Que temem vocês, os contras? Alguns brasileiros apegaram-se a um textículo de um americano (na terra dele o voto é facultativo), no qual ele defende o voto obrigatório, dizendo que é um ato de cidadania. Mas eu tenho o direito de não ser cidadão de coisa alguma, se assim o desejar. E não votar também pode ser um ato de cidadania, uma demonstração de descontentamento contra os candidatos, as opções colocadas ao eleitor, contra o sistema em si. O tal do americano termina dizendo que aprender a votar é um gosto adquirido, como aprender a beber cerveja ou uísque: é preciso experimentar muitas vezes para ver como é bom. Tenho pena do idiota que se fia nas palavras de um bêbado. Um bêbado, quem fala uma coisa dessas. Comparar o voto à bebida... Se é preciso experimentar muitas vezes é porque não é bom. Se começa a achar bom beber, é porque já está viciado. Já está dependente dos efeitos anuladores da consciência, alteradores da mente, já não controla sua vontade...
— Desse assunto vossa excelência entende horrores — aparteou um deputado mato-grossense.
— Entendo perfeitamente, pois superei meu problema. E vossa excelência? Prosseguindo: outros dizem que o voto facultativo possibilita o fim da democracia, uma vez que corre-se o risco de que toda a sociedade abra mão de votar. Isso poderia nos trazer o fascismo, o autoritarismo, enfim. Ora, se for o desejo das pessoas deixar de votar, deixar que qualquer um tome o poder para si, azar dessa sociedade. Paciência. Se ela não quer democracia, que seja feita sua vontade. Mas na sociedade que nós queremos a participação popular será total. Vislumbramos um corpo social formado por indivíduos esclarecidos, que sabem o que querem, que não deixariam que um energúmeno qualquer nos fizesse de marionetes. Não, meus colegas, não caiam nessas conversas. Começaremos a melhorar a sociedade à medida que passemos mais responsabilidade a ela. Para iniciar esse processo, temos que começar retirando a tutela do estado sobre o indivíduo. Para isso, podemos dar o pontapé inicial por intermédio do fim das obrigatoriedades. Fim do voto obrigatório, fim do serviço militar obrigatório, princípio cuja responsabilidade está a cargo do deputado Carvalho.
— Acabou, deputado? — inquiriu o presidente da Câmara.
— Não, vou defender agora minha emenda que prevê o fim do quociente eleitoral. É rápido. Obrigado. Somos contra o voto distrital, seja misto, seja puro. Para que mandar picuinhas de bairro, de município para cá? O Congresso é a casa das idéias e da fiscalização dos outros poderes da União. Temos que eleger os melhores. O quociente eleitoral é um instrumento inventado pelos grandes partidos a fim de eles próprios perpetuarem-se no poder, alcançando maioria das cadeiras legislativas. São partidos com mais visibilidade, maior tempo de exposição na mídia, maior espaço de tempo no horário gratuito em época de eleição. Naturalmente conseguem mais votos. E pela lei atual, o partido que, por exemplo, obtenha trinta mil votos terá cinco deputados eleitos, contra nenhum eleito de um partido que chegue à marca de 9.999 votos, no caso de quociente eleitoral de dez mil votos. Já houve casos de o candidato mais votado em determinado estado não ser eleito porque seu partido não alcançou o quociente eleitoral. Uma injustiça. Uma injustiça maior com as pessoas que votaram em peso naquele candidato prejudicado. O meu amigo Cariello apresentou emenda instituindo as candidaturas independentes. Para que elas se viabilizem, precisamos implantar o voto majoritário para as eleições legislativas. Virá para esta casa quem tiver mais votos, seja filiado a um partido ou não.
— O nobre colega me permite um aparte? — solicitou elegantemente o deputado cearense Lóide Yussif.
— Claro.
— O fim do quociente eleitoral não ocasionaria a atomização dos partidos? E se vierem as candidaturas independentes, o quadro não se agravaria? Dificilmente o presidente teria a maioria para governar com tranqüilidade.
— Pode nos achar ingênuos, deputado, mas previmos tudo. Alcançando sucesso em nossas inúmeras metas, chegaremos ao ponto em que os eleitores não enviarão para cá parlamentares dispostos a negociar seu apoio ou não ao governo em troca de favores clientelistas. O que vemos hoje é que os deputados reúnem-se em gangues, vulgarmente chamadas de partidos, para saquear os cofres públicos, para obter cargos-chaves a seus próprios interesses, ou de seu grupo. O senhor teme que as negociações mesquinhas passem a ser feitas individualmente, dando mais trabalho ao presidente? Pois pode me chamar de ingênuo, mas espero que os deputados independentes votem de acordo ou não com o governo segundo sua própria consciência, segundo seu entendimento do que é bom ou ruim para a sociedade. É visualizando uma política nesse nível que apresento minha emendas e dou meu total apoio às emendas e projetos oriundos das propostas originais de Laszlo Canto.
— Nossa, parecia o próprio Laszlo falando — avaliou Feiberg Matias, ao cumprimentar Stein. — Vocês adotaram mesmo o pensamento dele, hein? Lavagem cerebral ou o quê?
— Afinidade de idéias. Só que estou à vontade para discordar dele a qualquer momento. E nem por isso romperíamos. E você, Feiberg? Você é jovem. Por que fica preso a esses dogmas todos, a essas múmias vivas, ou quase?
— Ainda acredito numa revolução operário-proletária, numa alternativa a vocês burgueses.
— Que as asas da liberdade abram-se sobre você, meu filho.
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