terça-feira, dezembro 23, 2008

TRECHO DE "O PARTIDO DO INDIVÍDUO", LIVRO QUE JAMAIS SERÁ PUBLICADO

— Deputado, eu sou enviada da Berliner e o governo do meu país vê com preocupação sua política para os índios, cogitando até retirar seu apoio financeiro a projetos ambientais. Dizem ecologistas que o senhor pretende embranquecer os índios. É verdade?

— Não. E o governo de seu país pode ficar tranqüilo: eu amo a mãe na­tureza de uma forma, diria, edipiana. E os índios não são nossos inimigos: são habitantes deste país e devem ter os mesmos direitos e possibilidades dos outros. Por que não permitir-lhes mudar? Antes da existência do primeiro ecologista xiita, as culturas mesclavam-se sem culpa, os povos evoluíam pelo contato entre eles. O fato de nossos índios continuarem, aos olhos ociden­tais, primitivos deve-se unicamente ao congelamento do estreito de Behring. Se tivessem continuado na °sia, ou em algumas ilhas do Pacífico, teriam usu­fruído da mesma evolução por que passaram os chineses, os japoneses, entre outros. Evolução que veio do uso da roda, da tração animal e do contato com outros povos asiáticos e até europeus. Se os ecoxiitas existissem naquela época, não deixariam que os chineses passassem alguns de seus conhecimentos aos japoneses, por exemplo, congelando estes em seu atraso, como fazem com os índios atualmente. Já pensou o Japão uma imensa reserva indígena? Nossos índios são do mesmo ramo, do mesmo grupo étnico.

— Mas não há nenhuma intenção deliberada de retirar os povos da flo­resta?

— Não. Há a intenção de dar liberdade para quem queira entrar ou sair da floresta. Se dependêssemos dos ecoxiitas não estaríamos em constante evo­lução tecnológica, científica, pois, segundo sua lógica, progresso significa aniquilação. Ora, nós ocidentais já fomos escravagistas, já fizemos sacrifícios humanos, já fomos completos ignorantes no tratamento de doenças. Por que não dar também ao índio a chance de ter acesso ao que há de bom em nossa civilização? Cristãos, judeus e mulçumanos não desfrutam igualmente dos apa­relhos de ressonância magnética? Sendo este exame uma invenção ocidental, um japonês, para preservar sua identidade étnica, sua cultura, se recusaria a utilizá-lo? Pelo contrário, ele o usa, e o aperfeiçoa. E melhor: partilha esse aperfeiçoamento com o ocidente. Digo que se o estreito de Behring não tivesse derretido, os índios americanos teriam constituído um gigantesco Japão, com trocas de culturas pelo Pacífico e pelo Atlântico. Vamos fazer mais intercâmbios com os índios. Só isso. Se o governo de seu país não qui­ser repassar mais verbas, problema dele. No programa do PLI não está previs­ta a captação de recursos externos para aumentar a proteção e fiscalização sobre o meio ambiente. Esperamos fazer tudo com o que advier das reformas que pretendemos executar.

— Laszlo, na gritaria dos países ricos contra investimentos e explora­ção comercial da Amazônia não estaria escondido o desejo de fazer com que os países pobres permaneçam sempre pobres? Para que continuem sendo explorados por eles?

— Esse foi um dos grandes equívocos da esquerda. Não acredito que os países desenvolvidos queiram evitar o desenvolvimento dos outros. Estariam trabalhando contra si mesmos, pois quanto mais países ricos, mais mercados para eles, mais pessoas no mundo com poder aquisitivo para adquirir seus produtos. O que causa esse equívoco é o discurso dos líderes dos países de­senvolvidos, que nos encontros e conferências internacionais privilegiam o aspecto econômico, comercial, pois, teoricamente, já atingiram um nível sa­tisfatório de justiça social. E este é justamente o tema preferido dos mais pobres, sempre de pires na mão, esperando uma ajuda para acabar com a miséria. Essa divergência só aumenta o abismo social dos subdesenvolvidos. Creio que os ricos ajam assim involuntariamente, inconscientemente; mas com certe­za o fazem egoisticamente. Mas grande parte do problema está na falta de vontade política dos governantes e poderosos dos países pobres em resolver por si mesmos suas próprias mazelas.

— Deputado, eu sou artista também e viajei muito pelo exterior. E eu ouvia muito as pessoas dizer que nós não temos uma identidade, uma cultura própria. Na sua opinião, qual a nossa identidade?

— Tenho horror a identidade. Significa uma multidão de pessoas idênti­cas. Só reconheço a identidade individual. Felizmente não temos uma única identidade. Temos mais de 150 milhões delas. Felizmente não temos milhares de anos de uma melancólica e solitária tradição a nos manipular como mario­netes. Um indivíduo mestiço possui dentro de si mais cultura que toda uma nação homogênea. Não tivemos receio de nos mestiçar. O racismo que paira so­bre nós é resquício da visão mesquinha e viciosa de nossa herança européia, cujos traços ainda são dominantes em nossa sociedade, no novo mundo. Daqui um pouco nos descontaminamos. Somando a idade das culturas que este território abriga, nossa bagagem cultural, nosso estoque de identidade é imensamen­te superior aos de nossos detratores, meu amigo. Diga isso quando você vol­tar lá. Pode falar que foi um amigo seu que disse — o ambiente descontraiu-se.

— Nossa identidade é não ter identidade, portanto?

— É não ter uma identidade. É ter várias culturas, vários geists, no sentido hegeliano do termo (veja como é bom poder pegar um pedaço da cultura alemã — por que negar esse prazer aos índios?), palavra que também pode-se traduzir por cultura, apesar de geist significar espírito. Mas é cultura no triplo sentido de educação, concepção de si e do mundo e saber. A cultura é constantemente refundida. Como as três cores primárias. No início da civili­zação havia uma cultura aqui, outra acolá. Desde então elas vêm mesclando-se. Portanto não devemos nos abalar com o que alguns gostam de chamar de “imperialismo cultural”. O que acontece hoje é o que vem acontecendo desde os primórdios da civilização. Gregos e egípcios não trocaram tantos elemen­tos culturais? Não usaram deuses uns dos outros? A diferença é que hoje a troca ocorre com muito mais rapidez. As pessoas se assustam com essa veloci­dade e reagem antes de assimilar o golpe. Caminhamos para uma cultura ainda mais global. Como nossa pátria será todo o planeta, nada mais justo que con­siderar os ritos polinésios como parte de minha herança cultural. Os habi­tantes das ilhas do Pacífico são tão humanos quanto eu ou você. Não me preo­cupa se a cultura da minha cidade, do meu país, venha a fundir-se completa­mente com outra, ou outras. O que importa é que eu tenha o direito de esco­lher o que é melhor para mim. O que importa é o indivíduo, o que ele é ou queira ser. Para que importar-se com a manutenção de culturas, tradições em suas formas puras? Elas não se importam conosco, são abstrações, atavios, confeitos, cosméticos. O que importa são as pessoas, são elas que criam cul­turas. O que importa é o indivíduo, cada um de nós um universo cultural di­ferente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário