terça-feira, abril 24, 2007

TRECHO DE "A CONFRARIA DOS HOMENS DE BEM"

Abel percebeu a animosidade dos colegas, mas pouco se importou. Se sou­bessem o que estava passando, talvez se solidarizassem com ele. No meio da manhã seguinte foi ao encontro do padre Silvano, um homem de meia idade, fartos cabelos negros salpicados de fios prateados e grandes óculos que não escondiam os olhos alegres. Sem batina, o religioso estava relaxadamente acomodado na primeira fileira de bancos de sua pequena, modesta e suburbana igreja. Desde criança Abel não entrava num templo católico, a não ser para prestigiar algum casamento de seus “amiguinhos engomados”. Depois de um rápido olhar pelo ambiente vazio, pelas imagens, dirigiu-se celeremente até o padre.
— Silvano da Silva, seu criado. Sou a redundância em pessoa. Se sou silvano, evidentemente sou da silva. Um pleonasmo ambulante. Você parece um tanto quanto deslocado. Não freqüenta missa? Qual a sua religião?
— Jornalista não vai a igreja.
— Você é divertido, meu caro. Mas você não disse nenhum absurdo. Não conheço nenhum jornalista devoto. Faz algum sentido. O jornalista deve bus­car sempre a imparcialidade. Pensando bem, mesmo os tendenciosos não rezam. Bem... Então o que o aflige, jovem Abel? O que sua família achou da novida­de?
— Não contei nada a ela.
— Como não?
— Eles só vão notar algo diferente quando eu me mudar, quando sair de casa.
— Por que tanta crueldade para com os seus?
— Crueldade? Você é um padre assassino e o cruel sou eu?
— Há assassinatos que não são cruéis. Houve crueldade para com os na­zistas condenados à morte em Nuremberg? Os nazistas mataram seis milhões de judeus em poucos anos. Estima-se que a corrupção brasileira dizime seis mi­lhões de pessoas, de todas as raças, idades e religiões, a cada dois anos. E este número tende a aumentar. Tenderia.
— Não é a mesma coisa. Hitler planejou tudo, houve premeditação nos crimes nazistas, tortura, trabalhos forçados, tudo de pior que o ser humano pode oferecer.
— Ah, então você está insinuando que são menos graves os crimes in­conscientes? Pelo contrário, jovem Abel. Ao crime em si juntam-se a inconse­qüência, a irresponsabilidade e o desdém. Saiba, no entanto, que já fui como você, filho. Mas eles me convenceram, fizeram-me ver a verdade. Os indigna­dos, se quiserem suprimir a causa de sua indignação, devem estar preparados para sujar as mãos. Nem que seja de sangue. Mas não pense que sou insensível. A maioria de nós é insensível. Eu não.
Calado, Abel observou as lágrimas descerem pelo rosto do padre.
— Eu tenho remorsos, sabe? Acha que aprecio o que faço? Morro de re­morsos. Não como homem da igreja, mas como homem de bem. Moral e eticamente estou no inferno. Pessoalmente tenho sérias dúvidas quanto à existência de Deus, essas coisas. Peço perdão por essas lágrimas. Diz o rifão que homens não choram; mas homens de bem sim.
— Você é padre e não acredita em Deus?
— Não é maravilhoso? O fato é que eu acreditava. Tornei-me padre por absoluta vocação. Mas o tempo, as letras, a meditação, os confrades... Tudo isso mudou meu pensamento. Onde havia fé agora há dúvidas. Posso ser ateu, mas continuo cristão. Mesmo que Jesus não tenha passado de um reles homem, ele foi um homem extraordinário. Não vejo por que não o venerar e seguir seu exemplo. Era ele o homem que dizia estar trazendo a espada, não a paz. E você, meu jovem?
— Penso, logo não acredito. Ou, como reza o clichê, sou ateu, graças a Deus.
— No entanto, sofre de remorsos, é dilacerado pela dúvida a respeito de seus últimos atos. Você é bom, embora não o admita. Poderíamos ser o embrião de um grupo, os “ateus de Cristo”. Não existem os Atletas de Cristo?
— Não foi Freud que disse que a religião é uma imbecilidade infantil da humanidade?
— Doença. “Doença infantil da humanidade”. Tudo o que já disseram sobre a religião é verdade, mas ela é imprescindivelmente necessária. Claro que Durkheim estava certo quando de­clarou que a religião é o mais primitivo dos fenômenos sociais. Se fosse político perderia qualquer eleição, pois disse ainda que a religião é a ci­ência dos povos sem ciência ou das coisas das quais a ciência não é feita. Posso citar também Feuerbach, que sutilmente disse que a religião é o sonho do espírito humano; e que a religião é a essência infantil da humanidade. Posso ser mais violento e dizer com Robespierre que os padres criaram Deus à imagem deles. E é o que cada religião, seita, doutrina faz. Mas imagine um mundo sem religião. Nós os conscientes, cultos e instruídos podemos passar sem ela; mas a massiva ralé...
— Você acha que o populacho se consideraria desimpedido, que o caos reinaria...
— Como disse Ivan Karamazov, se Deus não existe...
— Creio que sem religião o ser humano teria se entregado a si mesmo; teria buscado uma maneira mais racional e científica de viver.
— Vejo que o Benício fez sua cabeça.
— Eu já pensava assim antes. Para mim, a religião sempre foi um substi­tuto para a consciência, um meio de o homem fugir de suas próprias responsa­bilidades, uma maneira de perpetuar a inconseqüência. Por exemplo: o confes­sionário católico nada mais é que um lavajato de almas. O indivíduo suja-se de maus atos, vai ao padre, limpa-se e, voilá, está pronto para sujar-se de novo. E sua vida (e dos que o cercam) não melhora. O protestante vai ao tem­plo, toma parte de uma catarse coletiva e volta para casa. No dia seguinte está dando cheque sem fundo, cometendo adultério etc. Mais fácil ter uma religião que uma consciência. Ser reto e honesto por princípio não dá tanto prazer do que ser religioso e canalha.
— Mas no mundo real as religiões são os calmantes da humanidade. Por isso deve-se respeitar os sacerdotes, pois são eles os aplicadores desse calmante. Mesmo aqueles libertos da superstição chamada Deus, como eu.
— Por que, mesmo deixando de acreditar, você continuou padre?
— É um ótimo emprego. Dou um lenitivo à massa inculta, tenho casa, comida, roupa lavada, algumas regalias e ainda recebo salário por isso. Além do que é uma boa fachada. Quem suspeitaria que o bom padre Silvano de­cide a vida e a morte de outros seres humanos?
— Não sei... Vocês são... são repletos de incoerências.
— Porque somos diferentes. Nosso único ponto em comum é a revolta. E a coragem para agir. Sabe como o Nino me convenceu a ser um confrade? Fazendo-me ver. Literalmente. Venha comigo. Vamos dar um passeio.
Embarcaram no humilde carro do padre. Não foi preciso rodar mais que meia hora para que atingissem o primeiro dos objetivos do clérigo.
— Sinta o perfume da pobreza, Abel. Isto é uma favela. Garotos brincando descalços sobre esgoto a céu aberto. “Casas”, entre aspas, diga-se, de madeira, pouco inferiores a casas de alvenaria para as quais três cômodos é luxo. Com uma comissão recebida por um deputado para que inclua determinada obra no orçamento federal, seria possível construir residências decentes para toda essa gente daqui. E sobraria dinheiro para asfalto e sa­neamento básico. Mas a quantia que aliviaria o sofrimento de milhares vai para o bolso de uma só pessoa, para satisfação de seu prazer acumulativo. Já tinha vindo a uma favela, Abel?
— Não. Sempre procurei evitar ao máximo que entrasse pelas minhas na­rinas o perfume da pobreza.
— Mas mesmo os elitistas se comovem. Aconteceu com alguns dos confra­des que eram elitistas cínicos. Vamos agora a um local onde os inocentes são abatidos diariamente pela incúria daqueles cuja responsabilidade seria pro­ver o bem-estar à população.
Em pouco tempo chegaram ao hospital público mais próximo. Ainda que de forma relutante Abel aceitou o convite para descer do carro e conhecer as instalações do prédio.
— Veja, Abel, um homem estirado no chão do corredor — foram até o paciente, que tomava soro. — Meu amigo, não há um leito para você?
— Não tem não, senhor — sussurrou o doente. — Não tem cama nem médi­co. Uma enfermeira é que resolveu me dar soro. Acho que ela salvou minha vida.
— Foi Deus que a mandou, meu filho. Agora descanse. Vê só, Abel? Sabe qual a causa dessa sua cara de nojo? A insensibilidade dos poderosos deste país. A cobiça, a maldade, a insensatez, a sede de poder. São imorais, amo­rais, aéticos quando se trata de angariar benefícios para eles mesmos. Enca­ram o assalto ao erário como uma forma fácil de atingir seus objetivos pecu­niários. Não se importam com a conseqüência de seus atos. Por aqui morre-se à toa. Crianças morrem de problemas por que não passam filhos de políticos; mulheres morrem antes, durante e depois do parto; pacientes são transferidos por falta de leito e morrem no caminho; médicos são raros por aqui porque ganham pouco e devem ter três ou quatro empregos para manter um padrão de vida razoável. Quantos hospitais poderiam ser construídos com as fortunas usadas para socorrer bancos falidos? Quanto mais poderíamos pagar aos médi­cos se o dinheiro para isso não fosse para o bolso de funcionários corruptos ou para os fundos de pensão das estatais? Os poderosos estão nos negando a civilização, Abel. Transitamos entre civilização e barbárie continuamente. Poderíamos viver apenas em civilização se não fossem as frutas podres de nossa cesta. Alguns poucos matam milhões todos os anos, Abel. E da pior ma­neira possível. É uma tortura coletiva. Deixam essa gente pobre morrer aos poucos, a definhar, ou ser pega pela onda de violência. Tiram-lhes um futuro melhor, pois ficam com o dinheiro que iria para a educação, por exemplo. Então resta-lhes as drogas, o crime, a sarjeta, a vida vegetal. Como você queria que não nos revoltássemos? Apenas resolvemos tentar dar um fim a esse genocídio. A solução paliativa é eliminar os genocidas. Mas também temos planos para que surja um homem melhor no futuro, uma geração diferente, evo­luída. No tempo certo você conhecerá esses planos. Queremos um mundo em que você não tenha mais de tapar o nariz.
Apoiando-se na parede do corredor, Abel ficou mudo por alguns minutos. Apaticamente acompanhava o movimento do hospital.
— Sinceramente, Abel, aquela gente merece ou não o tratamento que a Confraria está lhe dispensando?
— Acho... Acho que sim — balbuciou Abel depois de alguns segundos. — Eles devem pagar. Deve haver justiça. De alguma forma.
Já na casa do padre, Abel ganhou um consolador copo d’água.
— Tenho a impressão de que nunca mais vou me livrar desse cheiro de formol.
— Abel, semana que vem um funcionário público, chefe de uma quadrilha que cobra propina para apressar certos trâmites, receberá uma letal dose de justiça. É o início de uma nova etapa. O que você acha?
Um frio percorreu a espinha de Abel. Não sabia o verdadeiro significado daquele “o que você acha?” Que importava o que ele achava?
— Bom, que se faça justiça, santo padre. Muita desfaçatez dessa gente querer ganhar duas vezes para realizar seu trabalho. Mas por que pegar esses peixes pequenos?
— Você sugere que partamos logo para a caça aos grandes tubarões?
— Os políticos são os maiores patrocinadores do genocídio. Eles é que mentem para chegar à posição em que podem cometer seus crimes mais comoda­mente. São eles que fazem o contrário daquilo para o qual foram eleitos. São piores que os nazistas, já que não fazem distinção de raça.
— Você acha que é atenuante discriminar uma raça?
— Na verdade nem sei mais o que estou falando. Mais água, por favor.
— Acha que devemos partir já para os mais poderosos, para que eles sirvam de exemplo para os bagrinhos?
— Seria mais aconselhável. Não estaria na hora também de vocês começa­rem a assumir a autoria dos atentados? Seria algo como um alerta para os predadores do povo: “Olhem aqui, continuem roubando que vamos exterminá-los como os ratos que são”. Não se deve subestimar o efeito moral do medo. O medo é que produz santos, penso eu. Pelo menos os produz mais que a coragem.
— Belo raciocínio, filho. E os heróis? Também não seriam produtos do medo? Dos outros, da maioria? — Depois de um demorado suspiro, de uma boa pausa, o padre prosseguiu: — Sabe, Abel, quando o sangue em minhas mãos se torna um fardo insustentável, ajuda muito pensar na utopia. Utopia não: rea­lidade futura. Em médio ou longo prazo atingiremos um estágio que hoje só pode ser considerado utópico. Permaneço cristão quando sonho com um mundo de harmonia, paz e tolerância. Está provado que harmonia faz bem à saúde. Fize­ram um sério, metódico trabalho científico na Hungria, Abel. Constataram que nos tempos do comunismo, quando a igualdade entre aqueles que não pertenciam ao partido era instituída por decreto, quando praticamente não havia compe­tição entre as pessoas, a expectativa de vida entre os húngaros era alguns anos maior do que hoje, quando o comunismo caiu e ainda se verifica uma fre­nética transição para o capitalismo. Vive-se mais quando se vive em harmoni­a, Abel. Se isto acontecia na Hungria, onde as pessoas não tinham liberdade para discordar, para seguir seu próprio caminho, que dirá de uma sociedade onde todos desfrutarão de livre-arbítrio e que igualitária e voluntariamente não possuirão esse insano sentimento de competição?

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