quinta-feira, setembro 14, 2006

TRECHO DE "A CONFRARIA"

A campanha aproximava-se do final. Naqueles dias as dúvidas restringiram-se a saber quem seriam os governadores, senadores e deputados. Fausto Rosa já era chamado em toda parte de presidente virtualmente eleito. Em uma entrevista coletiva em Porto Alegre já nem perguntavam sobre aspectos de campanha: faziam-se conjecturas sobre como seria o país e o mundo com Rosa no poder.
— Presiden... Ou melhor, deputado — disse um repórter —, o senhor está sendo considerado um fenômeno de nível mundial. O mundo político só fala do “fenômeno Rosa”, discute sua espetacular ascensão e suas idéias. De alguma forma esse alvoroço poderá trazer benefícios ao país?
— Toda notoriedade desprovida de aspectos negativos é benéfica. Esse alvoroço de que você falou pode funcionar como um quebra-gelos para nosso governo, pode facilitar nosso trânsito internacional. Mas o que importa de fato é cumprirmos nossas metas para conosco. O resto é conseqüência. Espero que o mundo seja inundado de conseqüências benéficas por causa de nosso tra­balho. Os americanos intervieram no Vietnã temendo um efeito dominó: se o comunismo imperasse ali, poderia espalhar-se para os outros países do Sudeste asiático. Pois esperamos deflagrar um efeito dominó positivo: começando, pela proximidade, com os países latino-americanos. Esses povos verão que, se nós podemos, eles também poderão. Depois a febre se alastrará pelo mundo inteiro.
— Um continente como a África vai precisar de algo além de inspiração.
— Tem razão. Há muito a fazer pela África. Precisamos levar para lá o discurso da tolerância. É um continente repleto de lutas fratricidas, tribo contra tribo e até escravidão. Uma situação que não leva a nada. Todos somos iguais e o que importa é que estejamos todos vivos e bem. Não importa a que tribo pertença­mos. Por que não viver e respeitar que o outro viva, como mais ou menos dis­se Hegel? Algo parecido com a velha e sábia máxima: “não faças aos outros...” O que sempre fiz a vida inteira. Ou tentei, busquei: não fazer aos outros o que não gostaria que fizessem comigo. Um ensinamento, como gosto de repetir sempre e sempre, ainda que com algumas variações, presente em várias filosofias, não só na cristã. Mesmo Kant a enunciou.
— Mudando de assunto, deputado, o senhor acha que a tendência do esta­do nacional é sumir?
— Quanto ao estado do tipo atual, sim. Só não concordo com aqueles que dizem que processos como a globalização e a disseminação das tecnologias acabarão com as fronteiras, reduzirão o papel dos governantes, exterminarão a democracia representativa.
— Na sua opinião isso não acontecerá?
— Bem, tudo pode acontecer. O estado nacional pode até desaparecer, mas a democracia, não. Porque... Vamos pegar nosso exemplo aqui. Em nosso virtual governo (agora é moda utilizar o termo “virtual”), em nossa virtual gestão, municipalizaremos os serviços públicos. Cada município cuidará da saúde, da educação, seguindo as diretrizes do governo federal. Outros servi­ços serão terceirizados, privatizados. O cidadão paga uma taxa a uma empresa privada para ela recolher e tratar o lixo, por exemplo. A energia, as tele­comunicações, as rodovias, ferrovias, enfim, tudo será privatizado, mas sob o olho vigilante da sociedade, representada pelo estado. Assim que a respon­sabilidade administrativa estiver entranhada nas mais recônditas localida­des, quando elas puderem existir por conta própria, o governo federal poderá deixar de existir. Os governos estaduais hoje em dia o que são? São pratica­mente as lupas do governo federal: fiscalizam mais de perto o que municípios e setor privado estão fazendo com os serviços. Vai acabar o governador toca­dor de obras, comandante de uma multidão de funcionários. Os governos esta­duais serão algo como os ministérios deveriam ser — e o serão em nossa ad­ministração: departamentos enxutos com poder de coerção sobre quem estiver prejudicando a sociedade, abusando dela. Com o tempo, com o total amadureci­mento dos administradores das cidades, com uma ainda maior participação da comunidade, o governo estadual também perderá a razão de ser.
— Então o senhor acha que vai haver uma municipalização do mundo?
— Num prazo longo, pois algumas nações simplesmente não podem prescin­dir de um estado, pois ficariam a mercê de povos de cultura ainda refratária a uma globalização, a uma desfronteirização, povos de estados ainda com sede expansionista, colonizadora, catequizadora, que aproveitariam para atacar seus vizinhos sem comando central. Mas creio num futuro de cidades-estados, em que dos estados, das nações restem somente os nomes. Nome para facilitar a localização geográfica, histórica. Mas as relações ocorrerão entre indivíduos, empresas, instituições e cidades. Um mundo livre da xenofobia, que é um sentimento primitivo, resquício da primeira luta de tribo contra tribo.
Pela primeira vez desde que se iniciara a entrevista, Abel, que estava ao lado de Rosa, resolveu olhar com mais atenção para os jornalistas que abarrotavam a modesta sala cedida pelo sindicato dos bancários. Quando vasculhavam o fundo do recinto, seus olhos detiveram-se ao se deparar com feições familiares. Era Paula Chagas. Trocaram acenos. Pena que ela estivesse acompanhada de seu agora marido.
— Você quer um parâmetro? — prosseguiu Rosa em sua longa resposta. — Haverá estado enquanto houver exército. Este vai acabar quando o último general for para a reserva. Quando não houver por que entrar em guerra. Enquanto houver um excluído da sociedade, haverá estado. Enquanto houver uma pessoa sem atendimento médico ou analfabeta, deve haver estado. Isto se a justiça for um valor eterno. E espero que seja. Portanto, o estado deve estar sempre onde houver um desequilíbrio. Mas não deve criar embaraços à vida de quem viva e deixe viver. Sabem com o que devemos nos indignar? Nós, homens e mulheres de bem, não podemos mais aturar que um por cento da população viva à tripa forra e cinqüenta por cento na miséria. Evidentemente você não pode mudar o caráter, a índole das pessoas. Mas a reforma do estado, seus atos, seus feitos, seu exemplo, podem criar um padrão ético para a sociedade. De qualquer forma garanto-lhes que o estado brasileiro deixará de abonar e de estimular uma condição de degeneração ética. Não será por causa do estado que ainda existirão pessoas que batem nos filhos, que recorrem a drogas, que matam. O cafajeste o é por conta própria. Mas os valores éticos aos poucos dominarão toda a sociedade.
— Deputado, é verdade que o senhor abolirá o uso de fotografias do presidente em todas as repartições públicas?
— Se fosse possível, acabaria com a antiga veneração por chefes, por líderes, baseada nas hierarquias tribais, militares, religiosas. Acabarão os tratamentos majestáticos das cerimônias públicas, dos ofícios. Não exis­tirá mais mais aquela história de excelentíssimo senhor presidente, excelen­tíssimo senhor ministro. É só presidente, só ministro, só juiz, só prefeito, vereador, governador. Só “você”. Ninguém é melhor que ninguém, não. Você perguntou sobre retratos oficiais: outro item a ser abolido. Desde meu pri­meiro dia de governo não mais haverá a foto do presidente em toda repartição pública. Além do que, não há tantas moscas assim para serem espantadas nos asseados escritórios oficiais.
Encerrada a entrevista, Abel foi até onde se encontrava sua antiga su­bordinada para as saudações habituais entre conhecidos que não se vêem há muito tempo. E para trocar um cumprimento frio com o quase desafeto.
— Onde está seu gravador? Não veio falar com o Fausto?
— Estou fora dessa. Hoje sou uma exemplar dona de casa.
— Parabéns. Não sei se teria a capacidade de atingir tal nível.
— Vim por curiosidade. Queria ver o tal fenômeno Rosa de perto... E te rever, por que não? Sabe, até que eu quis te convidar para o casamento, mas naquela pressa, naquela loucura...
— Ei, tudo bem. Também queria me desculpar pela cena no bar. Acho que generalizei quando falei dos gaúchos. E toda generaliz...
— Sabia que não teria coragem de falar o que falou rodeado de gaúchos — disse Joel Breitner.
— Cometem-se muitas injustiças quando se generaliza. Na verdade, por aqui não se vêem tantos outros frescos como se pensa. Parece que tem um sujeito ali que não é. Ah, ele é catarinense. Vi a bandeira de Santa Catarina no gravador dele — disse Abel, já se retirando com o restante da equipe de campanha, que passava pelo local a caminho da saída. — Adeus, Paulinha.

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