sábado, agosto 12, 2006

TRECHO DE "CESALPÍNIA"

Os novos donos do poder em Portugal não se conformavam com o desenvol­vimento alcançado por Bragança Nova. Lá não havia o trabalho gratuito (es­cravidão), não havia uma férrea disciplina a obrigar todos a trabalhar (tra­balhava-se, e muito, por livre e espontânea vontade) e, o que era mais grave aos olhos metropolitanos, não havia um português a comandar a região.
Para efeitos legais — os helenistas não viam razão para se submeter a uma autoridade, mas o governo geral exigia que alguém ocupasse a chefia da gestão —, o governo da capitania estava entregue a Suzanne Lima, o que cau­sou uma comoção geral no Rio de Janeiro e, pouco depois, em Lisboa. Onde já se viu uma mulher ocupar um cargo de alto relevo? Aceitavam-se, pelo mundo afora, monarcas do sexo feminino, desde que não reinassem muito. Mas eleger uma mulher comum, sem sangue real e, portanto, divino? Para os poderosos este fato se explicava pela ausência de religiosidade entre os bragantinos. Os religiosos países latinos davam um papel definido para a mulher e este não era o de trabalhar em pé de igualdade com os homens e muito menos o de governá-los.
Em 1781 resolveram promover uma “discreta” vingança contra toda a regi­ão. Em vez de invadir, destituir o governo e implantar o estilo luso de go­vernar, proibiu-se o intercâmbio comercial entre Bragança e o resto da colônia do Brasil. “Vosso povo provou ser deveras eficiente para desenvolver-se por si próprio”, dizia o despacho da secretaria de assuntos estrangeiros enviado a Suzanne. “Não mais é necessário que saiam produtos bragantinos da capitania nem que entrem produtos brasileiros, portugueses ou estrangeiros em Bragança Nova.”
Isolamento
Como nos anos seguintes as autoridades coloniais continuaram a detectar movimento de entrada e saída pela fronteira, Lisboa resolveu radicalizar. Criou uma base para um agrupamento militar ao sopé das serras pelas quais se chegava a Bragança Nova. Oficialmente seria uma base avançada do exército colonial com objetivos expansionistas: serviria de ponto de apoio para as tropas designadas para proteger as fronteiras oeste e norte do Brasil.
Os soldados tinham ordem de deter quem fosse apanhado aventurando-se pelo único caminho transitável que levava à cidade de Natália. E deviam ati­rar em quem tentasse forçar a entrada ou saída. Depois de alguns incidentes iniciais — houve cinco mortes e dezenas de prisões —, os bragantinos con­formaram-se com sua nova situação. Aqueles brasileiros ou estrangeiros que tinham negócios com a capitania procuraram outros mercados.
Os primeiros anos de total isolamento foram bem assimilados pelos bra­gantinos. Felizmente produziam tudo que era necessário para a subsistência, e era para o consumo interno que deviam voltar sua produção, sua economia dali em diante. Evidentemente tiveram de deixar de consumir alguns alimentos cujo cultivo era impossível na região. Mas nada desesperador. Viriam a sen­tir falta de alguns avanços tecnológicos dos países mais desenvolvidos, as­sim como o resto do mundo ficaria privado das descobertas e invenções da capitania.
Mas o que mais os bragantinos lamentavam era a perda do contato com o mundo, com o que acontecia, com o que se falava e escrevia pelo planeta. Acompanhavam com extremo interesse o processo de independência das colônias norte-americanas, liam avidamente notícias sobre a Revolução Industrial e recebiam exemplares de obras dos iluministas franceses. Lastimavam que Por­tugal estivesse na contramarcha da liberalização do mundo ocidental.
Diálogo
Cronista dos primeiros tempos do isolamento, Rodrigo Rocheteau Rabelo, de um dos ramos da heróica família Rabelo Lisboa, escreveu, em 1793: “Vive­mos na especulação do que está ocorrendo no mundo. Que terá acontecido às ex-colônias nortenses? Como está sendo o governo da Maria vingativa? É uma situação angustiante. Como se o convidassem para uma festa mas lhe trancas­sem num cômodo apertado e escuro de onde não se ouvia nem o burburinho das gentes. É degradante que corramos o risco de receber cumprimentos de chumbo se apenas colocarmos a cabeça por sobre os morros que nos cercam.”
Páginas adiante Rodrigo relata o que se falou numa reunião da qual to­mou parte: “Cambises Pereira nunca fora visto tão exaltado. Falava alto e gesticulava ao pedir que tomássemos uma decisão enérgica contra o estado de coisas. Queria que formássemos um exército para atacar a base militar. Cal­ma, Tina Fontes lembrou-o da escassez de armas em Bragança. Que as fabrique­mos, bradou Cambises. Júlio Piza argumentou que não tínhamos pólvora, acres­centando ainda que uma medida de força poderia resultar no extermínio de centenas de milhares de bragantinos. Disse que talvez fosse esse o pretexto pelo qual os lusos esperavam para acabar de vez com nossa incômoda existên­cia. Tina levantou-se e afirmou que a única alternativa viável seria tentar o diálogo, tentar um acordo com a metrópole.”
Novas reuniões foram marcadas. Propostas surgiam de quase todas as ci­dades. “Cada cidade votou numa proposta”, conta Rodrigo Rabelo. “As propos­tas vencedoras foram comparadas, muitas eram idênticas, e quatro delas foram colocadas à escolha de toda a população (...) No final ganhou a proposta que nomeava um negociador para ir ter com os portugueses com o objetivo de esta­belecer o mínimo contato entre Bragança Nova e o mundo.”
Aleg Zânder Gonzaga pode ser considerado uma espécie de protoconector da história da Cesalpínia. Foi ele o designado para conversar primeiro com o comandante da base militar. “Aleg Zânder estava tranqüilo”, escreveu Rodri­go. “Beijou seus pais, suas irmãs, recebeu a bandeira branca e partiu, deci­dido, de Natália para a direção do agrupamento luso. Ficamos nós, a multidão e eu, a acompanhá-lo até que víssemos somente o pano branco a tremular pouco acima da linha do horizonte. Ninguém falou nisso, mas temíamos ouvir, a qualquer momento, um tiro de espingarda disparado por um dos lusos soldados.” O tiro não foi disparado. A estratégia da bandeira funcionara: curio­sos, os militares resolveram receber Gonzaga. Em conversa reservada com o comandante da base, coronel Francisco Aguiar de Lima, o representante bra­gantino discorreu sobre as propostas de seu povo. O militar disse que não podia decidir nada a esse respeito, que tinha apenas suas ordens a cumprir, mas que levaria um relatório sobre o encontro ao seu superior quando fosse ao Rio de Janeiro.

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