sexta-feira, agosto 31, 2007

UM URUBU POUSOU NA MINHA PAISAGEM


A imagem acima representa uma pequena fração da paisagem que se revela aos meus olhos todos os dias, seja por meio da janela do meu quarto, seja através das janelonas do andar superior, de onde esta foto foi tirada.

Mas num destes derradeiros dias de agosto, além da fumaça, da névoa e da secura do ar, um novo personagem resolveu tirar do armário seus dotes de modelo para compor esse vivo e mutante quadro que a natureza e a engenhosidade humana pintaram para que os jataienses possam apreciar todo dia.

Um mui digno urubu ficou horas no topo do poste da esquina que fica em frente de casa. A maior parte do tempo imóvel, qual a estátua do Cristo, que, lá do seu canto superior esquerdo, parecia, com seus braços abertos, esbravejar contra o intruso, como se estivesse gritando que aquela paisagem já tinha seu protagonista. Tudo em vão, pois o urubu não quis saber de abandonar o primeiro plano.

Altivo e glorioso, como o Flamengo, o clube que foi apelidado com seu nome, o bom e velho urubu continuou em sua performance de estátua viva e, num rasgo de magnânima generosidade, permitiu que dois prosaicos anus-pretos abiscoitassem uma migalha de sua cena. Lá estão eles, no canto inferior direito da foto.

Ser evoluído que é, o urubu também não guarda mágoa e rancor. Tanto que não impôs obstáculos à presença de um membro da raça humana, que tanto preconceito e inverdades vem despejando sobre a classe ao longo dos milênios. Os primos abutres, colegas no ofício de manter este planeta limpo e habitável, também sofrem com tal discriminação. Veja lá: entre o poste e os anus um homo sapiens finge que conserta um telhado. Mas todos sabemos que o que ele queria mesmo era tirar uma casquinha de Sua Excelência Urubulina.

O título desta postagem remete a um verso do grande poeta Augusto dos Anjos, que, apesar de todo o seu talento, não deixou de tacar uma pedrinha de preconceito no coitado do urubu. Confira a íntegra do poema Budismo moderno:

Tome, dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo meu coração, depois da morte?!
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!
Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;
Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

Mas Augusto dos Anjos é mais conhecido por outro poema, Versos íntimos:

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Muita gente deve estar neste momento pensando: "Por que ele mudou de assunto e começou a falar de poesia? Será que ele quer fugir da questão principal?" Calma, gente, não estou fugindo da questão principal. E respondo-a enfaticamente: não, o urubu não estava ali por minha causa. Eu já havia tomado banho. Já o consertador de telhado, não sei...

quinta-feira, agosto 23, 2007

UM CONTO NÃO-DIALÉTICO



Homo Platonicus

Arminius jamais revelou seus sentimentos por Rroxxannyy. A ninguém. Muito menos a ela própria. Arminius era místico e julgava que seu amor por Rroxxannyy vinha de existências anteriores. Nem que, nos primórdios do sistema solar, ele tenha sido uma rocha que escapuliu de um cinturão de asteróides e ela, um cometa. Mesmo assim, já naquela época, ele a amava.

Rroxxannyy desde sempre suspirou por Arminius. Receosa de tomar a iniciativa e acabar sendo condecorada por termos nada abonadores, ela nutria a esperança de que Arminius meramente notasse sua existência. Mas tudo que seus sentidos diziam é que ele só era feliz e falante com seus amigos. Diante dela, seus olhos desviavam-se e de sua boca não saía nem um balbucio.

O que Arminius e Rroxxannyy não sabiam era que Benoá, recém-chegado à cidade, também tinha pretensões afetivas quanto à garota. Muito tímido e de rígida formação religiosa, a Benoá não só faltava coragem para abordar Rroxxanny como também sobrava medo da desaprovação familiar, uma vez que o objeto de seu desejo não era da mesma religião.

Além de Rroxxanny, outra paixão em comum possuíam Arminius e Benoá. Foi num encontro de numismática que eles transpuseram a barreira do bom-dia/boa-tarde. Alguns meses de amizade depois, Benoá, ainda que claudicantemente, abriu-se com Arminius a respeito de sua outra paixão. O amigo limitou-se a ouvir, embora seu coração tenha disparado como nunca antes acontecera em sua vida e sua cabeça tenha entrado em ebulição.

Desde a revelação de Benoá, a vida de Arminius tornou-se insuportável. Não poderia continuar vivendo com a possibilidade de que outra pessoa tivesse por sua amada os mesmos sentimentos que ele. Pior ainda: e se Benoá tomasse coragem de se declarar a ela? E que desastre seria se ela correspondesse!

Certa manhã as aulas terminaram mais cedo. Chegara a notícia de que Benoá fora encontrado morto em seu quarto. Levantara-se a hipótese de suicídio por envenenamento, mas nenhum bilhete, nenhuma evidência fora deixada. Como soube fingir tristeza muito bem, Arminius recebeu o consolo de vários colegas, afinal, era o melhor, talvez o único, amigo do falecido.

Até Rroxxanny veio lhe dar os pêsames. Aquele sorriso o convenceu de que havia valido a pena. Sim! Agora ela voltara a ser sua exclusividade. Ele poderia voltar a sonhar com ela sozinho.

terça-feira, agosto 14, 2007

PRATÃO, PIPÓCRATES E O VEGETARIANISMO

- Então tá confirmado, hein, Pratão? Tu vai lá em casa sábado, né?
- Claro, claro. Como é que eu ia perder a festa de formatura do seu filho no primário?
- Valeu, amigão. É um momento muito feliz pra família, afinal, tão jovem e ele já está prestes a ir pra quinta série...
- Pois é, parece que foi ontem que ele nasceu...
- No entanto, já se vão 23 anos...
- Mas você cuidou daquele detalhe?...
- Que det... Ah, sim! Não se preocupe: vai ser um churrasco pras pessoas normais, mas pra ti eu já mandei trazer as melhores reservas de repolho do Velho Continente.
- Lá vem você de novo brincar com o meu vegetarianismo... É motivo de chacota o fato de eu ser uma pessoa evoluída?
- E desnutrida.
- Saiba que não é preciso devorar outros seres vivos para obter os nutrientes necessários para se ter uma vida saudável!
- Tudo bem, tudo bem. Não quero discutir a mesma coisa outra vez. Longe de mim...
- “Mas”...
- Eu não ia dizer “mas” nenhum.
- Ah, eu te conheço, Pipócrates...
- Eu ia dizer “porém”.
- Vai tom...
- Calminha, meu chapa, calminha... Eu só ia dizer, de forma racional e civilizada, que você... NÃO PASSA DE UM HIPÓCRITA!
- Que isso? Pra que gritar, pô?
- Deu vontade.
- O que tem a ver o meu vegetarianismo com hipocrisia?
- Bem, para responder a sua questão, começo fazendo minhas perguntas: primeiro, por que você não come carne?
- Ora, você sabe muito bem. Acho que o ser humano, enquanto ser pensante, racional, consciente, não tem o direito de acabar com a vida de outros seres para nutrir-se ou apenas para lhe agradar o paladar. É simplesmente... simplesmente... imoral.
- Certo. Então o senhor concorda que pratica o vegetarianismo para poupar animais outros do sofrimento?
- Sim... Em parte, está correto.
- Não só do sofrimento, mas também da morte violenta, provocada?
- Exatamente.
- Mas o senhor ingere álcool, não?
- Sim, eu bebo, você bebe... E daí?
- A medicina já comprovou por inúmeras vezes que as bebidas alcoólicas são a causa de diversos males: detona o fígado - neguinho pode morrer de cirrose, câncer, essas merdas todas -, gastrite, polineurite, anemia, pelagra, úlceras cutâneas, deficiência de vitaminas B-sei-lá-o-quê, cérebro, respiração, coração e o diabo a quatro. Além dos problemas de violência doméstica, brigas de bar, acidentes de trânsito e...
- Ei, peraí! Peraí! Onde tu tá querendo chegar?
- Quero chegar à minha pergunta final: se você é vegetariano por não concordar com a matança de outros animais, por que você toma álcool, mesmo sabendo que a bebida mata, seu animal?
- Ah, vai te f...
- Você é um animal, um ser vivo que nem o boi, o porco e o frango. Matar ou infligir sofrimento a si próprio vale, mas a outros animais, não. Se isso não for hipocrisia, então o que é?
- Eu deixaria de ser vegetariano se o Aristóteles Omorris fosse servido numa bandeja.
- Nossa, que mau gosto... Bleargh!
- Pensando bem, nem os índios caetés – aqueles que deglutiram o bispo Sardinha – teriam estômago pra comer o Totó.
- Nem os urubus...

Filósofos de rua em tempo integral, Pratão e Pipócrates discordam em tudo, mas um sentimento os une: o ódio a Aristóteles Omorris

domingo, agosto 12, 2007

MIUDEZAS

• Com ele não tinha esse negócio de foro íntimo. Era juiz de direito.

• O MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE INFORMA:
Temos uma boa e uma má notícia. A boa é que o desmatamento diminuiu. A má é que já não há mais matéria suficiente para que os índices continuem caindo.

• O PESSIMISTA: Penso, logo desisto.
O OTIMISTA: Não penso, logo insisto.
O REALISTA: Penso. Repenso. Então ajo. Bem... ou não.

• "Claro que tenho minhas convicções, mas também tenho fome" - disse ele ao se vender.

quinta-feira, agosto 02, 2007

CONTO DIALÉTICO-METAFÓRICO-ALEGÓRICO-SIDERAL


Imperatividade

- Em nome do povo umabaraúna, habitante deste humilde mundo, eu, Kaligino dos Helpécidos, saúdo nossos visitantes.
- Eu sou o general Rahms Pheld, representante da Oops, Organização Onisciente dos Planetas do Sistema. Minha missão é de exploração, sempre em busca de novos aliados para nossa união de mundos, que já conta com 210 civilizações. Asseguro-lhes que nossos povos são eminentemente pacíficos.
- Tudo bem, mas pra que servem aqueles instrumentos nas mãos de seus acompanhantes? E aqueles imensos cilindros que ornam sua nave?
- São armas. Mas só para defesa.
- Mas, se vocês são pacíficos, por que precisam de armas?
- Porque há povos que, por ignorância ou outro motivo qualquer, rejeitam nossa presença ou até mesmo nossa mera existência. Existem povos que repelem qualquer tipo de contato com outros mundos, muitas vezes usando violência para atingir seu objetivo.
- Por que simplesmente não respeitar a vontade desses outros povos?
- Bem... Hã... Às vezes a defesa passa a ser uma questão de sobrevivência. Por exemplo: nossos sensores detectaram a presença de grandes animais em seu mundo. Quando vocês são surpreendidos por um deles, vocês não usam armas para defender suas vidas?
- Claro que não, amigo!
- Vocês não reagem?
- Obviamente temos um instinto de sobrevivência, de preservação da espécie. Mas nunca a custo do extermínio de outra. Podemos tentar fugir, nos esconder, mas ferir ou matar, jamais!
- E quando não há como fugir ou esconder-se?
- É a vida... Chegada a nossa hora, não há o que fazer.
- Vocês não matam nem para comer?
- Que tipo de absurdo é esse? Matar para comer? Isso é... isso é simplesmente deprimente, descabido, horroroso... Eu nunca... Então seu povo mata outros seres vivos para comê-los?
- Sim. São fontes de proteína...
- E você disse que usava essas... essas armas somente para defesa...
- Só comemos seres irracionais.
- O irracional tem menos direito à vida que o racional? Por quê?
- Deixemos de lado essas questões filosóficas, por enquanto. Gostaríamos de iniciar um entendimento diplomático.
- Como?
- Será que o tradutor universal não está funcionando direito, tenente?
- Tudo em ordem, senhor. Todas as unidades estão funcionando perfeitamente.
- Ótimo. Caro Kagilino...
- Kaligino.
- Sim. Caro Kaligino, nosso governo ficaria muito honrado se seu planeta passasse a fazer parte da Oops.
- Ficamos lisonjeados por pensarem assim.
- Para que isso aconteça, traremos nosso pessoal para dar início aos trâmites de praxe. Isto, claro, se vocês concordarem.
- Certamente. E o que ganharíamos com nossa adesão a sua organização?
- Vocês teriam acesso a todo o nosso conhecimento científico, cultural e tecnológico. Poderiam desfrutar de todo o conforto, comodidade e prazeres dos quais dispõem qualquer cidadão de qualquer um dos planetas que fazem parte da Oops. Nós criamos coisas com as quais vocês jamais sonharam.
- Talvez porque nunca tenhamos precisado delas.
- Ora, vocês não têm naves, não têm veículos de espécie alguma, andam nus... Vocês... Vocês me dão nojo!
- Há milênios somos felizes vivendo desse jeito. Por que mudar? A troco de quê?
- A troco de nossa amizade! Vou deixar uma infinidade de dados sobre as mais avançadas civilizações que compõem nossa organização. No próximo mês eu volto para ter uma resposta de vocês. Que vocês se reúnam, que façam congressos, assembléias, votações, o que for. Daqui a um mês vocês me dão uma resposta, combinado?
- Como desejar, general. Vocês sempre serão bem-vindos ao nosso mundo.
- Olha só aquela velha horrível! Deveria ser coberta à força!
- Horrível? Não entendi esse conceito.
- Digamos que ela seja totalmente desprovida de beleza.
- Mas ela é um ser tão maravilhoso.
- Falo de beleza física, meu caro.
- Quer dizer que, coberta, ela ficaria mais agradável aos seus olhos?
- Não é bem assim. É indecente!
- Mas ela sempre praticou o bem assim, descoberta. Há algo mais decente que isso?
- Está bem, está bem. Não estou aqui para julgar seu povo!
- Ao matar outros seres vivos, vocês usam roupas ou não?
- Até o próximo mês... amigo.

***

- Olá outra vez, Kaligino dos Helpécidos.
- Seja novamente bem-vindo, general Rahms Pheld. Vejo que desta vez você trouxe um número muitíssimo maior de acompanhantes e de naves. E quão imensas elas são! Parabéns ao seu povo por tais maravilhas tecnológicas.
- Em nome do governo da Organização Onisciente dos Planetas do Sistema solicito que me informe a resposta de seu mundo ao nosso convite de ingresso na Oops.
- Bem, general, como eu já previa, todos os umabaraúnas consultados resolveram não aceitar sua oferta de repasse dos chamados “avanços científicos”, embora todos tenham adorado estudar sua cultura por meio das informações que você nos forneceu.
- Quer dizer que não vão aceitar nossa amizade?
- Pelo contrário. Aceitamos sua amizade sem pedir nada em troca. Vocês serão sempre bem-vindos ao nosso mundo para nos fazer visitas à hora que quiserem. Apenas decidimos não mudar nosso modo de vida, o que aconteceria se aceitássemos sua tecnologia e sua estada de forma permanente.
- Então é assim? Pois bem, “amigos”. Tenente, providencie o desembarque de todas as nossas tropas. Depois traga os técnicos e os burocratas.
- Então já podemos começar a invasão, senhor?
- Quem falou em invasão, tenente? Vamos fazer mais uma ocupação, entendeu?
- Sim, senhor.
- Espero que em menos de um mês comecemos a enviar os primeiros carregamentos de minérios e de carne.
- Vocês não podem ferir nosso mundo!- Sai da frente e cala essa boca, velho imundo! Coloquem uma roupa nele! Vou mostrar a essa gente o verdadeiro significado da amizade!